RIO DE JANEIRO, RJ, E BARCELONA, ESPANHA (UOL/FOLHAPRESS) – Durante a Copa América dos Estados Unidos, em 2024, Duda Fournier estava hospedada no hotel em que familiares dos jogadores da seleção brasileira ficavam quando ouviu um comentário que não caiu bem. Aquilo fez a mulher de Lucas Paquetá, titular do Brasil na Copa 2022 e um dos principais talentos da seleção na Europa, levar seus filhos para longe do ambiente.
Paquetá tentava voltar ao time nacional após o maior momento de ameaça a sua carreira. Em campo, as coisas não funcionaram. O meia não foi bem e a seleção, então comandada por Dorival Júnior, fez um torneio ruim, eliminada nas quartas de final pelo Uruguai.
Aquele torneio, e os comentários ofensivos que Duda ouviu, representam bem os dois anos em que a Federação Inglesa tentou, sem sucesso, provar que Paquetá descumpriu regras relacionadas a apostas esportivas. “Foram dois anos perdidos”, resumem pessoas próximas a Lucas Paquetá com quem o UOL conversou.
Entre agosto de 2023, quando as denúncias vazaram na imprensa, e 31 de julho de 2025, quando veio a absolvição, o jogador deixou de ser um dos destaques técnicos da Premier League, viu ruir uma negociação avançada para trocar o West Ham pelo Manchester City, perdeu o status de protagonista na seleção e abandonou o convívio de familiares.
Hoje é o aniversário de 28 anos de Paquetá. Nesta semana, a comemoração envolveu o retorno à seleção brasileira, após ser convocado por Carlo Ancelotti para os jogos contra Chile e Bolívia, pelas Eliminatórias.
O que levou o meia brasileiro ao inferno temporário foram acusações relacionadas a quatro jogos da Premier League:
Leicester City (12/11/2022)
Aston Villa (12/03/2023)
Leeds (21/05/2023)
Bournemouth (12/08/2023)
Em todos, Paquetá levou o cartão amarelo. O problema é que um “volume anormal de apostas” dizia que ele seria advertido. Uma casa de apostas avisou as autoridades inglesas e a investigação começou.
Quando detalhes do que aconteceu foram surgindo, a relação com a família se estremeceu.
Em contato com o UOL em setembro de 2024, Bruno Tolentino, tio do jogador, admitiu que ele e o filho, Yan, apostavam em partidas envolvendo Lucas. A reportagem mostrou, ainda, que houve transferências bancárias dos familiares de Paquetá para o jogador Luiz Henrique, então no Botafogo, também envolvido no relatório suspeito das empresas de monitoramento de apostas.
O fato de ter familiares ativos no mercado foi crucial para corroer laços de Paquetá com a própria família. Hoje, o jogador reduziu contato com quem ficou no Brasil e deixou de falar com pessoas que eram muito próximas até então.
Duda Fournier também teve papel relevante no afastamento dos familiares. Entre outros gestos, ela bloqueou o irmão de Paquetá, Matheus, nas redes sociais e cortou relações com ele e outros familiares do marido. Fontes ouvidas pelo UOL contaram que, a pedido da esposa, o jogador deixou de repassar dinheiro a membros da família.
No âmbito profissional, Paquetá perdeu aquela que poderia ser a grande oportunidade de mudar de nível, integrando uma elite mundial que hoje parece distante.
O Manchester City via o brasileiro como um possível substituto de Kevin De Bruyne. O belga entrava na reta final de um contrato que não seria renovado.
Quando a investigação tornou-se pública, o City vencera a Champions, e Paquetá chegaria com um salário até três vezes maior. Os números eram altos: por volta de 20 milhões de libras anuais (cerca de R$ 145 milhões).
Hoje, dois anos depois, o cenário é bem diferente: Paquetá continua no West Ham, que pretende negociá-lo por 65 milhões de euros, mas ainda não encontrou comprador. O desempenho das últimas temporadas, já sob efeitos da investigação, foi abaixo das expectativas do clube e do próprio meia.
Sem grandes opções de mercado na Premier League, uma transferência para a Arábia Saudita passou a entrar nos planos, segundo o UOL apurou. Seria uma forma de tentar recuperar o dinheiro não ganho nos dois anos em que a vida do meia dependia de uma sentença da Federação Inglesa. Por enquanto, não há negociações abertas.
O consenso entre pessoas próximas ao jogador é que ele precisa de uma boa temporada para recuperar a autoconfiança e a imagem no mercado. Assim, seria possível retomar a carreira de um ponto próximo, na medida do possível, ao que ela estava em 2023.
Paquetá fez 28 anos. O tempo não volta, e uma proposta como aquela do Manchester City pode nunca mais se repetir.
Na seleção, Paquetá também estava em alta. Titular na Copa de 2022, ele seria uma peça importante no quebra-cabeças de Fernando Diniz, recém-nomeado treinador na época em que a história apareceu.
O técnico o havia convocado para sua primeira lista, divulgada em 18 de agosto de 2023, mas teve de retirá-lo minutos antes do anúncio, a pedido da CBF. Nos meses seguintes, Diniz lamentava em conversas com a comissão técnica o fato de não poder contar com o meia.
A lesão de Neymar, em outubro daquele ano, deixou a seleção órfã de um organizador de jogo. Seria a chance de Paquetá dar um passo à frente; mas, por decisão da CBF, ele só seria convocado quando a entidade tivesse mais informações sobre o caso.
Paquetá até voltou a ser convocado para a seleção sob o comando de Dorival e participou da Copa América de 2024. Mas, nesses dois anos, perdeu espaço. Agora que está liberado das acusações mais pesadas, foi convocado por Ancelotti.
O SILÊNCIO
Desde que a história ganhou o noticiário, Paquetá ficou em silêncio o máximo que conseguiu. Por ordem de seus advogados, mas também por iniciativa própria, o jogador evitou comentar detalhes do caso publicamente e raramente o fazia em conversas particulares, mesmo com pessoas de confiança.
As entrevistas pós-jogo foram proibidas pelo West Ham, bem como as passagens pela zona mista área de imprensa após os jogos. Nas poucas vezes em que Paquetá conversou com a imprensa em entrevistas exclusivas, o assunto foi vetado previamente. Só teria acesso ao jogador quem consentisse com isso.
Houve duas exceções, em entrevistas coletiva da seleção brasileira: uma antes de um amistoso contra a Inglaterra e outra na fase preparatória para a Copa América.
Nos dois momentos, o jogador fez pronunciamentos, antes das rodadas de perguntas, dizendo que não poderia responder questões sobre a investigação. Quando algum jornalista insistiu no tema, ele limitou-se a dizer que não podia responder.
No vestiário da seleção, silêncio. Paquetá tem um grupo de jogadores mais próximos, que inclui Vini Jr., mas o assunto da investigação nunca chegou a ser um tema nas rodinhas.
Quem viu Paquetá antes e durante as investigações não tem dúvidas em dizer que o meia um tradicional “agitador” do grupo ficou mais triste e calado depois que o processo se tornou público.
A ausência de Paquetá na CPI das Apostas, em 2024, também foi um cálculo dos advogados do atleta. Para eles, qualquer declaração do jogador às autoridades brasileiras poderia provocar um confronto de decisões e dificultar a defesa no processo na Inglaterra.
O LIMBO
Ver um jogador ficar durante quase dois anos respondendo por um processo deste tipo não é comum. Casos mais recentes tiveram resoluções mais rápidas, embora os meandros fossem diferentes.
Em maio de 2023, o atacante Ivan Toney foi suspenso por oito meses, por apostar repetidamente em jogos de futebol, incluindo os de sua própria equipe, o Brentford. Foram, ao todo, 232 violações às regras de apostas da Federação Inglesa. Toney foi diagnosticado como viciado, mas foi absolvido de manipulação.
No mesmo ano, o italiano Sandro Tonali, do Newcastle, passou por um processo semelhante: pegou dez meses de suspensão por ter apostado em jogos do Milan, seu ex-clube.
O volante também foi considerado um apostador compulsivo, mas não um manipulador. Passou oito meses de tratamento para se livrar do vício.
Nos dois casos, as investigações aconteceram em sigilo, e, uma vez divulgadas, tiveram as penas aplicadas pouco depois. Nenhum deles teve de passar por quase dois anos de processo, liberados para jogar, mas questionados a cada vez ação no gramado.
Phil Hutchinson é um advogado inglês com experiência em casos investigados pela FA. Ele participou, por exemplo, da defesa do atacante Daniel Sturridge e do lateral-direito Kieran Trippier, quando estavam sob suspeita de passar informações privilegiadas a familiares e amigos sobre suas transferências. Até isso movimenta o mercado de apostas na Inglaterra.
Phil explicou ao UOL que existem dois caminhos para os processos que param na FA. Um de curto prazo e um mais longo. O de Paquetá definitivamente foi o segundo, devido ao nível de complexidade da matéria.
“Eu fiquei bem surpreso, na verdade, de ver isso demorar tanto quanto demorou. Mas eu entendo que a duração da audiência foi entre 4 e 6 semanas. Foi uma oitiva muito longa, então eu suponho que baseado nisso houve muita informação para digerir”, disse o advogado, que atua no escritório Mills & Reeve.
O que os investigadores da FA fazem para durar tanto? Eles recebem os alertas das casas de apostas, já que há um acordo de cooperação firmado entre eles.
A partir daí, há uma tentativa de cruzamento de dados sobre a origem das apostas, contas relacionadas e o local de origem. No caso de Paquetá, isso levou à região metropolitana do Rio.
Ainda teve outro elemento. O primeiro jogo suspeito no caso Paquetá foi em novembro de 2022. O quarto e último, agosto de 2023. Só aí já indica um lapso temporal grande para ser investigado.
“Pode levar bastante tempo para fazer isso. A FA tem um departamento de investigação que coleta toda essa informação, e muitos dos seus investigadores são ex-policiais. Eles são muito bons em coletar informação de uma variedade de fontes”, explicou Hutchinson.
Quando o jogador é formalmente acusado, já depois de ter sido ouvido uma primeira vez, ele recebe um documento com os detalhes e os motivos pelos quais a acusação foi formalizada. Para Paquetá, esse passo aconteceu publicamente em 23 de maio de 2024.
O jogador tem então sete dias para responder a acusação, se admite, se nega ou então providenciar documentação devida dentro de um prazo.
“Em todos os casos que eu trabalhei, escrevemos para a FA e dissemos que precisávamos um número de meses para oferecer a informação. Conseguimos obter vários meses, mas esse (do Paquetá) foi bem mais de um ano. Então, sim, um bom trabalho dos advogados, eu suponho. Conseguiram assegurar essa extensão de tempo”, completou Hutchinson, que resumiu:
“Foi um caso realmente sério, com um resultado brilhante para o jogador”.
O MEDO E O ALÍVIO
Durante os quase dois anos de processo, também houve medo.
Quem acompanhou o jogador durante o processo relata que houve, por parte do atleta e do seu estafe, o receio de uma punição dura incluindo longas suspensões ou até o banimento do esporte.
O risco de que a carreira de Paquetá pudesse ser interrompida (ou mesmo terminar) de forma abrupta provocou planos de contingência. Um deles era de tentar recorrer de uma eventual decisão contrária e “ganhar tempo” para que ele pudesse esticar ao máximo a carreira antes de um veredito definitivo.
Nesse cenário, o Flamengo acabou surgindo como uma possibilidade. Mas a volta para o clube que o revelou ficou para o futuro.
Paquetá voltou-se para a religião. Foi batizado em uma cerimônia que contou com a participação do atacante Pedro, do Fla. Postagens de cunho religioso passaram a ser comuns. Não foi diferente na comemoração pela decisão da FA de não condená-lo na parte mais grave do processo:
“Desde o primeiro dia desta investigação, mantive minha inocência contra essas acusações gravíssimas. Não posso dizer mais nada agora, mas também não consigo expressar o quanto sou grato a Deus e o quanto estou ansioso para voltar a jogar futebol com um sorriso no rosto. À minha esposa que não soltou a minha mão, ao West Ham, aos torcedores que sempre me apoiaram, ao Fernando Malta e à minha equipe jurídica – muito obrigado.”