SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O tempo em que Jair Bolsonaro (PL) ficar em prisão domiciliar não deve ser abatido de eventual condenação na trama golpista, uma vez que a medida cautelar foi aplicada em razão de processo diferente, avaliam especialistas ouvidos pela reportagem.
O ex-presidente está com tornozeleira eletrônica desde o dia 18 de julho. No dia 4 de agosto, foi colocado em prisão domiciliar. Ambas as cautelares ocorrem na esfera de um inquérito que indiciou o político e um de seus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), por possível coação e obstrução do julgamento da tentativa de golpe de Estado.
Segundo especialistas, há previsão legal para que o tempo em prisão domiciliar possa ser abatido de uma condenação final, mas ela não deve valer no caso do ex-presidente por se tratarem de processos diferentes.
Enquanto o inquérito sobre obstrução pode ou não virar ação penal, o processo que analisa se Jair Bolsonaro liderou a trama golpista de 2022 está em reta final, com julgamento marcado para 2 de setembro.
Se condenado, o ex-presidente pode pegar mais de 40 anos de prisão e aumentar a inelegibilidade que atualmente vai até 2030.
A liberdade do político, porém, já está restrita em razão da prisão domiciliar do dia 4 de agosto. O ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), impôs a medida depois de concluir que Bolsonaro desrespeitou proibição anterior de usar as redes sociais, ainda que por intermédio de terceiros.
Previstas no Código do Processo Penal, as medidas cautelares têm como objetivo assegurar o bom andamento da investigação e a aplicação da lei penal, além de evitar a prática de novas infrações.
A lei prevê, dentre outras possibilidades, o monitoramento eletrônico, a proibição de manter contato com uma pessoa determinada e a prisão preventiva, considerada a mais gravosa.
Já a prisão domiciliar é uma alternativa à prisão preventiva em regime fechado. Prevista no artigo 318 do Código do Processo Penal, ela pode ser aplicada à pessoa que cumpra as condições previstas, como ser maior de 80 anos ou estar extremamente debilitado por motivo de doença grave.
Bolsonaro também está proibido de receber visitas, salvo de advogados e pessoas previamente autorizadas. Os visitantes não podem utilizar celular, tirar foto ou gravar imagens. Além disso, o político segue sem poder usar as redes sociais e não pode ter contato com embaixadores e outras autoridades estrangeiras, além de réus e investigados.
De acordo com Telma Rocha Lisowski, professora de direito constitucional na Universidade Mackenzie Alphaville, o fato de a prisão domiciliar vir de processo diferente limita a possibilidade de o tempo sob a cautelar ser abatido em possível condenação na trama golpista.
Ela diz que tanto o período em domiciliar quanto o tempo com tornozeleira poderiam em tese ser contados, mas apenas se estivessem no mesmo processo, o que não é o caso de Bolsonaro.
“Existe entendimento do STJ [Superior Tribunal de Justiça] dizendo que, mesmo nesses casos em que há tornozeleira eletrônica e limitação da liberdade de ir e vir apenas em alguns momentos [período noturno e dias não úteis], o período deve ser computado na pena definitiva”, explica.
Thiago Bottino, professor da FGV Direito Rio, também entende que o fato de a domiciliar vir de processo diferente gera a limitação.
Ele explica que deduzir o tempo da prisão domiciliar na pena “visa a evitar que o réu cumpra mais tempo de prisão do que o devido, considerando o período em que já ficou privado de liberdade durante o processo”.
Entretanto, diz o especialista, “isso ocorre quando a prisão preventiva foi decretada no mesmo processo em que a pessoa foi condenada”.
Por isso, ele entende que o abatimento não seria possível no caso de Bolsonaro, mas ressalta haver jurisprudência do STJ dizendo que a prisão pode ser utilizada no abatimento de pena se for concomitante a outro processo.
“No caso do Bolsonaro, a prisão é concomitante. Então esse tempo de prisão poderia ser usado para abater o tempo de pena. Mas não é o que a lei diz. É uma interpretação do STJ mais benéfica para o acusado.”
A interpretação sobre a impossibilidade do abatimento na situação do ex-presidente é compartilhada por Ricardo Yamin, doutor em direito pela PUC-SP, embora ele afirme que o tema é passível de discussão.
“Entendo que não [pode ser abatido] porque Bolsonaro está em prisão domiciliar por outro crime, relacionado a obstrução de Justiça e coação no curso do processo”, diz.
Segundo Diego Nunes, professor de direito da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), o abatimento do tempo em prisão domiciliar seria possível para uma eventual condenação caso o inquérito que apura a coação e obstrução vire processo.
“A prisão domiciliar equivale a outros tipos de prisão cautelar [como preventiva e temporária] e, portanto, serve para abatimento de eventual futura pena de condenação”, afirma. Para Nunes, entretanto, o mesmo não valeria para o período apenas com tornozeleira.
A previsão é que o julgamento da trama golpista termine ainda este ano, embora advogados de réus já tenham aventado a possibilidade de um pedido de vista passível de atrasar uma absolvição ou condenação.
Um pedido de vista poderia prolongar as atuais medidas cautelares aplicadas a Bolsonaro, embora elas possam ser revogadas a qualquer tempo se a Justiça entender que não há mais razões que as justifiquem.
Com isso, o ex-presidente ficaria mais tempo com restrição de liberdade, sem que provavelmente pudesse abater o tempo preso em casa em eventual condenação na ação que julga a tentativa de golpe.