SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A resposta do Brasil ao tarifaço imposto pelo presidente dos Estados Unidos Donald Trump não deve ser a retaliação, mas o investimento estratégico em setores nos quais detém vantagem competitiva, como energia verde, agricultura de ponta e infraestrutura digital.
É o que diz a economista chinesa Keyu Jin, autora do livro “A Nova China: Para Além do Capitalismo e do Socialismo” e professora associada de economia da London School of Economics and Political Science.
“O Brasil deve concentrar-se na modernização da sua base industrial, investindo em energia verde, tecnologia agrícola e infraestruturas digitais, setores onde detém vantagens naturais”, afirma, em entrevista à reportagem. “Mesmo assim, é importante parecer pronto para defender sua posição.”
Segundo ela, em vez de fazer como os Estados Unidos e elevar o protecionismo, o Brasil deve fortalecer cadeias locais, gerando mais empregos e aumentando o valor agregado das exportações, o que levará o país a ser “não um seguidor de guerras comerciais, mas um ator relevante na próxima fase do crescimento global”.
Keyu diz que as tarifas atuais impostas por Donald Trump são mais difíceis de driblar do que as de seu primeiro mandato, quando, em 2018, retaliou a China com sobretaxa de até 50% sobre produtos como painéis solares, máquinas de lavar, aço e alumínio.
A nova rodada abrange setores mais amplos e estratégicos, enquanto antes, os impactos eram absorvidos por varejistas ou mitigados pela desvalorização cambial chinesa.
“O comércio global está sendo reestruturado, e a indústria dos EUA segue em declínio”, afirma.
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GUERRA COMERCIAL E A NOVA ORDEM MUNDIAL
A especialista afirma que a guerra comercial não trouxe os resultados esperados para os Estados Unidos e, embora o objetivo fosse reduzir desequilíbrios comerciais com a China, elas não foram eficazes sozinhas para reavivar parte do setor industrial norte-americano, em queda, e não vão mudar a nova ordem mundial do comércio
“Tarifas punitivas para para compensar o desequilíbrio não são capazes de resolver o problema”, diz.
No caso do declínio da indústria de transformação norte-americana, para ela, as mudanças ocorreriam de qualquer forma. Mesmo que não fosse por causa da China, seria por causa de países como México, Vietnã, Tailândia e de economias da Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático).
“E se não por causa do comércio, então certamente [seria] por causa da tecnologia”, afirma.
TARIFAÇO
Keyu defende que a ascensão da China não apenas remodelou os fluxos comerciais globais, mas mudou “a orientação psicológica e estratégica do Ocidente”. Para ela, a resposta inicial dos EUA sob Trump foi em grande parte reativa e bilateral na tentativa de reverter desequilíbrios, mas não deu certo.
“Manter-se forte para triunfar era importante e a China compreendeu que as concessões levavam a mais exigências”, diz ela, em defesa da retaliação chinesa ao tarifaço norte-americano, mas se mantém contrária ao Brasil fazer o mesmo.
“A retaliação funcionou para a China não apenas devido às tarifas, mas porque foi combinada com escala, alavancagem e uma estratégia clara de longo prazo. O Brasil deveria se concentrar na construção de mais alianças, centralidade na cadeia de suprimentos e exportações estratégicas.”
VIRADA AMERICANA
Em seu livro, no qual busca explicar a ascensão chinesa e o destaque de um país comunista no mundo capitalista, ela defende que o domínio chinês do comércio mundial, invertendo o eixo no qual os EUA vendiam e a China comprava, fortalece a economia norte-americana e não o contrário, como pensa Trump com a geração de empregos e a sustentabilidade de setores norte-americanos.
“Em termos líquidos, foram criados mais empregos nos EUA devido ao comércio com a China do que empregos perdidos, para não mencionar os enormes ganhos acumulados ao nível dos consumidores e das empresas porque podiam importar itens mais baratos e uma maior variedade de produtos”, diz.
Para ela, no entanto, não se trata apenas da posição de Donald Trump. “Trata-se da virada americana para o nacionalismo econômico e o protecionismo.”
BRICS AJUDAM E A PRESSÃO CONTRA TRUMP
Keyu defende que as tarifas são punições limitadas por conta das alianças locais e globais. Como exemplo cita a Asean e o Brics, grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e outros países convidados tido por alguns especialistas como um dos motivos do tarifaço mais duro dos EUA contra do Brasil.
“Na verdade, isto torna a alavancagem e os pontos de estrangulamento dos Estados Unidos muito menos eficazes. Temos que recordar o exemplo histórico dos soviéticos. Os controles de exportação dos EUA sobre os soviéticos não funcionaram muito bem porque não conseguiram reunir os seus aliados europeus”, afirma.
“Em geral, ter mais amigos e parcerias em todo o mundo é a melhor maneira de permanecer resiliente contra choques globais, seja a Covid, a guerra entre a Rússia e Ucrânia ou Trump.”
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Para ela, os países não estiveram preparados para o crescimento político acelerado da China, mas quem se concentrou em formar mão de obra com novas competências saiu-se melhor. Agora, o novo desafio é com a IA (Inteligência Artificial), que trará mudanças no mundo impossíveis de se segurar.
“O verdadeiro choque foi que a China era demasiada grande e crescia rapidamente. O próximo grande choque será o da IA, algo de que nenhum país será poupado.”
QUANDO A CHINA VAI PASSAR OS EUA?
Em seu livro, Keyu afirma que a China passaria os Estados Unidos como líder econômico mundial em 2030, mas as projeções publicadas na ocasião não tem se confirmado, com os chineses crescendo em ritmo menor e os EUA conseguindo recuperação de seu PIB (Produto Interno Bruto).
Ela diz que as guerras comerciais podem ser um problema para o desempenho econômico dos EUA e não descarta uma possível recessão, mas afirma acreditar que 2030 é um período curto para avaliar o desempenho econômico dos dois países tão diferentes.
A economista destaca as estratégias distintas de crescimento entre eles no que diz respeito a financiamento, produção intensiva e inovação rápida. “Alguns dizem que a China está a vencer a guerra comercial, embora, na minha opinião, ninguém ganhe uma guerra comercial”, afirma.
“O maior desafio da China não são os EUA, nem o seu objetivo principal é assumir o controle do PIB dos EUA. É interno, doméstico, como não cair numa crise de dez anos. E o seu objetivo deveria ser aumentar de forma sustentável a prosperidade do seu povo, em vez de competir com os EUA pelo peso econômico.”
DIFERENÇAS ENTRE O MODELO CHINÊS E O BRASILEIRO
A economista destaca que a principal diferença entre os modelos chinês e brasileiro vai além da política econômica e está ligado à estrutura de gestão: enquanto o Brasil centraliza suas ações, a China opera com uma economia descentralizada, marcada pela chamada “economia do prefeito”.
Nessa lógica, governos locais são incentivados a promover crescimento e inovação.
“Na China, a entrega econômica é implementada a nível local, até mesmo a nível municipal; 80 cidades estão a fabricar veículos elétricos e painéis solares, e as atividades tecnológicas estão espalhadas por toda a China, não apenas nas principais cidades de primeiro nível”, afirma.
Além disso, a visão é de longo prazo. Investimentos chineses iniciados nos anos 2000, sustentados por alta poupança interna e foco em infraestrutura, digitalização e tecnologia resultaram em produtos que se destacam na economia atual, como painéis de energia solar, baterias EV e carros elétricos.
“Os governos locais são incentivados a proporcionar crescimento econômico e empregos, de uma forma que nenhum outro país consegue imitar. A capacidade do Estado, creio, é a maior diferença”, diz ela.
POLÍTICA DO FILHO ÚNICO
Já o Brasil se destaca por sua rede de proteção social considerada mais completa e mais abrangente que a chinesa mas que demanda atenção para manter sua sustentabilidade fiscal, conforme destaca em seu livro. “A segurança social, no entanto, continua a ser inadequada”, afirma sobre a China.
Há ainda um paralelo entre a política do filho único na China e a queda da taxa de natalidade no Brasil. Para ela, embora o controle populacional chinês tenha trazido ganhos em capital humano, gerou pressões sociais intensas.
“Hoje, na China, alimentou-se a concorrência excessiva na educação e a angústia nacional, e gerou um fardo excessivo para as crianças pequenas”, diz.
No Brasil, a baixa taxa de fertilidade 1,55 filho por mulher, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) pode seguir caminho semelhante em termos de investimento educacional.
“Teorias interessantes sugerem que quando a fertilidade começa a diminuir, o investimento em capital humano aumenta porque as pessoas têm menos filhos. Esse rápido aumento do capital humano pode, na verdade, alimentar o crescimento. Esse seria o lado bom da política do filho único. E essa foi a experiência da China”, diz.
O problema, diz ela, são “as consequências sociais e da escolha humana”.