SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Prestes a completar um ano de sua reinstalação, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) fez um movimento simbólico em um pleito histórico para esclarecer violações de direitos humanos na ditadura. No último dia 14 de agosto, o colegiado se reuniu, no Ministério da Defesa, com o titular da pasta, José Múcio Monteiro, para cobrar acesso a arquivos secretos das Forças Armadas do período.

“Foi uma aproximação importante. Gostei da reunião e acho que foi uma coisa diferente. Quebrou esse tabu de não falar, de não conversar, de não trabalhar junto”, disse a presidente da CEMDP, a procuradora da República Eugênia Gonzaga.

No encontro, Múcio reiterou a posição dos militares nas últimas décadas: até onde tem conhecimento, disse, os arquivos das Forças Armadas ou já foram liberados ou foram destruídos. Mas assumiu o compromisso de levar a solicitação aos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica para que voltem a verificar se existem documentos ainda restritos.

“Ele deu a palavra de que, se houver uma confirmação de que há arquivos que não foram liberados, ele criaria um diálogo para que isso [o acesso] seja efetivado”, afirmou o advogado da União Rafaelo Abritta, chefe da Assessoria Especial de Relações Institucionais do Ministério da Defesa e representante da pasta na CEMDP.

Por ter assento nos dois órgãos, foi Abritta quem articulou a realização da reunião, que demorou alguns meses para sair. Em março passado, a comissão enviou um ofício à Defesa solicitando “formalmente o acesso de seus membros aos Centros de Informação vinculados a Organizações Militares das Forças Armadas do Brasil”.

O objetivo, diz o documento, é “realizar diligências ‘in loco’ que possibilitem a identificação do acervo existente, bem como a localização de documentos que podem ser essenciais para o esclarecimento dos fatos [ocorridos durante a ditadura]” (…), “em especial as circunstâncias dos desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais”.

Diante de uma resposta frustrante (de que não havia documentos), Abritta foi instado pelos colegas de CEMDP a pedir um encontro com Múcio.

“O ministro prima pelo diálogo sempre. Ele gosta de falar: ‘Quando tem briga, ou eu mato ou eu morro: ou eu corro pro mato ou eu subo pro morro’. É impossível brigar com ele”, disse o assessor.

Além de Múcio, Eugênia e Abritta, participaram da reunião mais três integrantes da CEMDP: Diva Santana (representante dos familiares de mortos e desaparecidos), a deputada federal Natália Bonavides (PT-RN, representante da Câmara) e o procurador Ivan Marx (representante do Ministério Público Federal).

Pelo colegiado, só faltaram as duas representantes da sociedade civil, Vera Paiva (professora de psicologia da USP e filha de Rubens Paiva e Eunice Paiva) e Maria Cecília Adão (historiadora e professora).

O encontro foi breve, durou menos de meia hora, mas ainda assim Eugênia avaliou como um avanço. “A posição do ministro José Múcio é que esse acesso tem que ser franqueado, que é preciso fazer esse trabalho conjunto, que se tenha pelo menos um esforço nesse sentido.”

O histórico das Forças Armadas em relação ao tema não acalenta a esperança da presidente da comissão. Por décadas, representantes dos familiares de mortos e desaparecidos e defensores de direitos humanos pleiteiam o acesso aos documentos, tendo conseguido apenas arquivos com importância relativa, como fichas funcionais de militar es envolvidos com a repressão, mas nada que ajude a esclarecer, por exemplo, o destino de quase 250 desaparecidos políticos.

Não foram especificados quais documentos/arquivos a comissão pretende acessar. “É muito difícil especificar porque não existe um inventário. Mas, por exemplo, nós queremos documentos administrativos, as folhas de ponto dos integrantes desses órgãos de repressão. Como são classificados como documentos administrativos, não foram transferidos para o Arquivo Nacional”, diz Eugênia.

“Então nós precisamos ir até lá entender como é que ficou armazenada essa documentação. Existe a alegação que tem documentos que foram destruídos, mas, por exemplo, esses documentos administrativos não tem como ser destruídos, porque como é que essas pessoas então se aposentaram?”

Abritta considera o escopo difuso da solicitação um entrave ao acesso. “O próprio pedido formulado pela comissão é, vamos colocar assim, platônico. Está no plano das ideias, não tem nada palpável. Eles pedem acesso aos arquivos e não elencam nem quais as unidades militares a que gostariam de ter acesso. Fizeram um pedido genérico. Assim, eu quero acessa r, mas eu não sei o que eu quero acessar.”

Certidões de óbito retificadas

Para marcar um ano da reinstalação da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos, o colegiado fará, a partir de 28 de agosto, em Belo Horizonte, cerimônias de entrega de certidões de óbito retificadas a familiares de vítimas da ditadura.

Todos os 434 mortos e desaparecidos terão suas certidões retificadas. Mas, segundo Eugênia Gonzaga, a comissão calcula que conseguirá entregar os novos documentos a cerca de 200 famílias. “Se não houver familiar para receber, elas de todo modo foram retificadas para fins históricos.”

A retificação foi possível graças a uma parceria da CEMDP com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que, em dezembro passado, aprovou uma resolução determinando que certidões de óbito de vítimas da ditadura deverão registrar, como causa mortis, “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro”.

Depois de Belo Horizonte, a CEMDP fará cerimônias de entrega em São Paulo, Recife, Rio e Brasília.