SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Denise Weinberg ergue os braços sob a neblina gelada de um frigorífico. Ela os balança numa valsa com aquela névoa misteriosa, ao som de uma trilha que faz questão de ser ouvida. A cena indica o tom de fantasia de “O Último Azul”, filme de Gabriel Mascaro que venceu o Urso de Prata, o segundo prêmio mais importante do Festival de Berlim, em fevereiro.
Aquela fumaça vai reaparecer depois saindo de motores de barcos e aviões, como se turvasse o caminho à frente da protagonista, Tereza. O governo acredita que lhe restam alguns poucos anos de fraldas e bengala, mas ela discorda mesmo que não saiba ao certo o que fazer com seu futuro.
Quem abre os olhos daquela senhora é um caracol de baba azul, um bicho fictício que excreta um líquido capaz de ampliar os horizontes, como numa viagem lisérgica de ayahuasca. Sob efeito daquele colírio fantástico, ela olha para passado e futuro, e pensa como seria viajar de avião um sonho que nunca realizou.
“É um filme que convida à dança, à brincadeira. Que faz refletir sobre coisas profundas de uma maneira muito lúdica e lírica, como numa distopia tropical delirante”, diz Mascaro, falando da névoa também em paralelo às nuvens, que Tereza deseja conhecer de perto.
Aos 77 anos, a personagem é caçada por uma aparelhagem montada por um fictício e distópico governo brasileiro para forçar idosos a irem para uma colônia distante, da qual pouco se sabe. Assim, os filhos ficam livres para trabalhar e aumentar a produtividade do país. Abandonar o lar e a família é como um ato patriótico, embora divida opiniões.
Tereza começa o filme tranquila, trabalhando num frigorífico que picota jacarés, ciente de que ainda tem três anos até o envio compulsório a uma colônia. Mas a lei muda, e logo os “cata-velhos” como chamam as gaiolas sobre rodas que caçam idosos nas ruas começam a perseguir todos acima dos 75 anos.
“Eu não queria pensar numa distopia com carros voadores e mudanças tecnológicas, mas com mudanças de comportamento”, diz Mascaro, que já fez algo semelhante em “Divino Amor”, filme com Dira Paes que imagina como seria o Brasil sob uma teocracia. Neste cenário tomado pelas igrejas neopentecostais, mulheres vão à praia cobertas até o pescoço e sua fertilidade é assunto de interesse público.
“Em O Último Azul, falamos de um governo desenvolvimentista, mas que não interessa saber se é de esquerda ou direita. É bonito pensar num filme que toque as pessoas para além do partidarismo, da polarização, das coisas que nos dividem hoje. É um filme sobre sonhar, desejar, ressignificar a vida.”
No caminho desta espécie de “road movie” aquático ou “river movie”, já que toma os rios amazônicos como estradas, Weinberg encontra Rodrigo Santoro, no papel de um barqueiro que tenta superar a traição da mulher, Adanilo, como o dono de um hidroavião viciado em apostas, e Miriam Socarras, como uma missionária de mentirinha, que passeia pelas vilas da região vendendo Bíblias digitais.
Outro gênero com o qual Mascaro brinca é o “coming of age”, aquele que retrata o processo de amadurecimento da adolescência para a vida adulta. Aqui, porém, falamos de um “coming of late age”, brinca o diretor, transformando o subgênero numa “chegada da idade avançada”.
Mascaro conta que sua investigação do corpo idoso, que ficou uma década em gestação, veio de uma pesquisa sobre filmes que retratavam personagens de idade avançada. Eles eram poucos, logo constatou, e normalmente passavam suas tramas ou contemplando a morte, como é o caso de “Amor”, de Michael Haneke, ou presos ao passado, como em “Era uma Vez em Tóquio”, de Yasujirô Ozu.
“Nunca falamos do presente. É como se esse corpo idoso não despertasse o interesse narrativo ou não estivesse autorizado pela sociedade a sonhar. É um corpo domesticado no cinema, e eu queria fazer algo diferente, fazer um filme sobre pulsão, desejo, transformação”, afirma, alinhado com os debates sobre etarismo de hoje.
Mascaro não precisou ir longe para buscar inspiração a encontrou na própria avó. O diretor conta que cresceu numa casa rodeado de parentes e, quando o avô morreu, houve temor em relação a como a matriarca da família ficaria. De repente, aos 80 anos, ela começou a pintar, no que ele chama de “estalar da ressignificação da vida”.
“Hoje ela tem 97 anos, vai assistir ao filme pela primeira vez. É um filme que vem de um lugar de afeto, que me toca no íntimo. Quando eu olho para essa personagem, a Tereza, eu levo esse apaixonamento por alguém que vai ganhar vida, que é um pouco como eu olho para a minha avó desde então.”
“O Último Azul” estreia num momento em que desperta o interesse do mundo, e dos próprios brasileiros, pelo cinema nacional. O primeiro semestre foi marcado por um enfileiramento de prêmios importantes internacionais para as produções daqui.
Começou com o Globo de Ouro de melhor atriz para Fernanda Torres. Depois, vieram o Urso de Prata, o prêmio do júri ecumênico e o prêmio dos leitores do jornal Berliner Morgenpost para “O Último Azul”, no Festival de Berlim.
Não demorou muito até o Oscar de filme internacional para “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, e, então, para os troféus de “O Agente Secreto” em Cannes, pela direção de Kleber Mendonça Filho e a atuação de Wagner Moura. O thriller do pernambucano também embolsou láureas da Fipresci, a Federação Internacional de Críticos de Cinema, e da AFCAE, dado aos chamados “filmes de arte”.
Mascaro comemora o bom momento e espera vê-lo refletido nas bilheterias de “O Último Azul”. Apesar do estouro de público de “Ainda Estou Aqui”, a produção nacional vem tendo mais dificuldade que a estrangeira para se reerguer na nova realidade das salas de cinema, herdada da pandemia de Covid-19 e da ascensão do streaming no período.
Os prêmios na Berlinale ajudam, ele conta. “O Último Azul” já foi vendido para 65 países e, desde então, foi exibido em mais de 50 festivais pelo mundo incluindo o de Gramado, há duas semanas, em que serviu de filme de abertura.
“Está sendo um ano muito especial, muito bonito e potente. Eu fico feliz em ajudar, com um filme muito brasileiro, com a nossa loucura e a nossa cor, mas que conseguiu falar para o mundo. Espero que seja mesmo uma retomada da aliança do público brasileiro com o seu cinema, uma retomada do desejo do brasileiro de se ver na tela.”
O ÚLTIMO AZUL
– Quando Estreia nesta quinta (28), nos cinemas
– Classificação 14 anos
– Elenco Denise Weinberg, Rodrigo Santoro e Adanilo
– Produção Brasil, 2025
– Direção Gabriel Mascaro