SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Duas mulheres que viveram por mais de 35 anos com o mesmo homem tiveram reconhecido pela Justiça o direito de dividir a pensão por morte deixada pelo companheiro.
A decisão foi tomada na semana passada pela 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais de Santa Catarina. Elas haviam recorrido após o pedido ser negado em primeira instância, em ação contra o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
A relatora do caso, juíza Gabriela Pietsch Serafin, disse que, embora o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) tenha proibido desde 2018 o registro em cartório de uniões poliafetivas (aquelas que envolvem três ou mais pessoas), essa norma não impede que tais relações sejam reconhecidas judicialmente.
Ela também não desconsiderou que o STF (Supremo Tribunal Federal) já decidiu não ser possível reconhecer duas uniões estáveis “paralelas” ou “simultâneas”. No entanto, no caso, trata-se de um único núcleo familiar.
“O núcleo familiar é único e interdependente, constituído de forma diversa do comum, mas pautado na boa-fé”, disse a juíza. Ela acrescentou que, no que diz respeito ao direito previdenciário, a falta de proteção estatal à família significaria ignorar uma realidade vivida por mais de 35 anos e violar a dignidade de todas as pessoas envolvidas.
As duas mulheres, hoje com 60 e 53 anos, vivem em Santa Terezinha do Progresso, município do interior de Santa Catarina com cerca de 2.400 habitantes. Elas mantiveram relação conjunta com o companheiro de 1988 até 2023, ano em que ele faleceu. A união dele com uma das mulheres havia começado em 1978.
Ao todo, a família teve oito filhos, quatro de cada mãe, e trabalhava na agricultura. A convivência era pública e todos no local conheciam a família.
O QUE É A PENSÃO POR MORTE?
– A pensão por morte é um benefício pago pelo INSS aos dependentes de um segurado que faleceu ou teve a morte presumida reconhecida.
– O benefício pode ser concedido se a pessoa falecida:
– Era segurada do INSS
– Estava em período de graça (mantinha a qualidade de segurado)
– Recebia algum benefício ou tinha direito adquirido a recebê-lo
Elimar Mello, advogado especialista em direito previdenciário e sócio do escritório Badaró Almeida & Advogados Associados, explica que há uma divisão dos dependentes em classes. Na primeira, entende-se que há a dependência econômica do herdeiro com o segurado falecido. Assim, estão classificados nela: cônjuges, companheiros em união estável, filhos menores de 21 anos ou inválidos.
Já na segunda classe, caso inexistentes os dependentes de primeira classe, estão os pais do segurado e, por fim, os irmãos menores de 21 anos ou inválidos.
O advogado diz ainda que há possibilidade de reconhecimento judicial para ampliar o conceito de “dependente”, desde que se comprove formação de núcleo familiar estável, contínuo e duradouro, mesmo sem que haja uma previsão expressa em lei.
A LEI PREVÊ A DIVISÃO DE PENSÃO EM CASOS DE RELAÇÃO POLIAFETIVA?
Mello diz que não há uma previsão legal expressa que determine a divisão da pensão por morte em uniões poliafetivas. No entanto, a Constituição Federal de 1988 ampliou a noção de entidade familiar ao incluir termos de liberdade de constituição familiar, pluralidade familiar e afetividade.
“Como o direito em si busca se adaptar às realidades sociais, embora a legislação não reconheça a união poliafetiva como unidade familiar, a jurisprudência apresenta julgados e precedentes que acabam por validar esse tipo de vínculo como um contrato privado”, diz. Mas é diferente da união estável ou casamento.
Nos casos de relacionamento poliafetivo, ele diz o que vai existir é uma interpretação da lei. Ou seja, as decisões vão se debruçar no reconhecimento da existência de núcleos familiares estáveis, que podem permitir a divisão da pensão entre mais de um companheiro.
QUAIS SÃO OS DOCUMENTOS QUE COMPROVAM ESSE TIPO DE UNIÃO?
Segundo o especialista, entre os documentos que podem ser utilizados estão: escrituras públicas de união estável, prova de coabitação e residência comum, principalmente que sejam de longa duração (cópias de contas, recibos, documentos oficiais com mesmos endereços), demonstração de abertura de contas conjuntas ou bens adquiridos em conjunto, dependência econômica registrada (plano de saúde, IR, seguros) e declaração de testemunhas que confirmem a convivência pública, contínua e duradoura.
“No caso da união poliafetiva, a exigência se mostra ainda maior, porque não há previsão legal direta. Assim, os tribunais tendem a avaliar a solidez do vínculo afetivo e econômico entre todos os integrantes, de modo a afastar situações de mera conveniência ou fraudes”, diz Mello.
COMO FICA A DIVISÃO?
Pela regra legal, a pensão deve ser dividida de forma igual entre os dependentes de uma mesma classe. Assim, Mello diz que se existirem apenas dois companheiros, cada um recebe 50%. Na existência de filhos menores, por exemplo, dois companheiros e dois filhos menores de 21 anos, a divisão será de 25% para cada dependente.
DEVO IR AO INSS OU PROCURAR A JUSTIÇA?
O INSS não reconhece a pensão por morte em caso de união poliafetiva, por isso o segurado terá de ir à Justiça, embora haja decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) determinando que, antes de entrar com ação judicial, é preciso procurar a Previdência.
A busca pelo direito no Judiciário só pode ser feita diante da negativa do INSS. Mello também diz que é fundamental que os requerentes que bucam a pensão façam os pedidos de oitiva de testemunhas no requerimento administrativo.