RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Morreu neste domingo o cartunista Jaguar, um dos maiores do país, aos 93 anos. Ele foi um dos fundadores do jornal Pasquim, veículo de oposição à ditadura militar lançado em 1969. Jaguar estava internado com uma infecção respiratória, que levou a complicações renais, no hospital Copa D’Or, no Rio de Janeiro, que confirmou a morte à Folha de S.Paulo.

Jaguar era o pseudônimo de Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe. Ficou famoso pela visão crítica e ácida que tinha da sociedade brasileira. Tanto é que foi preso em 1970, durante a ditadura, e ficou na cadeia por três meses.

Ele começou a carreira aos 20 anos, no jornal O Semanário. Depois, passou pelas revistas Manchete e Senhor, e aí fundou o Pasquim. Trabalhou também em veículos como o jornal Correio da Manhã e a Folha, para a qual fez cartuns desde 2017 até o mês passado.

Quando entrou para o elenco de cartunistas deste jornal, com nomes da nova geração, disse estar feliz. “É uma rapaziada que me trata como se eu fosse igual a eles.”

Com paciência de monge, seu colega caricaturista Cássio Loredano colecionou dezenas de desenhos com a assinatura ou o traço de Jaguar que encontrava esquecidos em gavetas e espalhados em mesas de redação.

A maior colheita era no gavetão do Brazil Herald, jornal dirigido à comunidade americana no Rio, em cuja gráfica da rua do Resende o Pasquim rodou nas décadas de 1970 e 1980.

Loredano os armazenava numa grande pasta. Até que um dia resolveu entregá-los ao autor, então casado com a médica Célia Regina Pierantoni e dando um tempo na vida boêmia. Se o tivesse feito antes, corria o risco de ouvir: “Sabe aquele material todo? Esqueci no táxi”.

Jaguar nunca guardou um original. Em quase 70 anos de atividade, calculava ter produzido cerca de 30 mil cartuns, charges, caricaturas e ilustrações de todo tipo, desenhados em qualquer pedaço de papel, até guardanapos de botequim, os quais muitas vezes eram enfiados no bolso antes de entregues amassados às redações.

Imagine a trabalheira que terão os futuros arqueólogos da imprensa gutenberguiana para farejar inúmeras publicações –a maioria já extinta, muitas no exterior– e levantar a trajetória artística daquele que Ruy Castro considera o maior cartunista brasileiro de todos os tempos.

“Para mim, Jaguar é um gênio. Os outros defeitos eu desculpo”, já declarou Millôr Fernandes. Hélio, irmão de Millôr, não pensava assim quando recebeu na Tribuna da Imprensa, em 1957, o jovem aspirante a chargista: “Você é a maior negação vocacional que já vi”.

A sorte é que Jaguar tinha um emprego no Banco do Brasil, onde entrara por concurso, mesmo conseguindo a façanha de ter tirado zero em datilografia.

“Não esquenta, o trabalho é mole”, comentou um funcionário veterano, Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, com quem cursou uma escolinha de humor batendo papo e bebendo chope no Café Simpatia da avenida Rio Branco. No futuro, Jaguar ilustraria todos os livros de Stanislaw.

O adolescente franzino foi expulso do Colégio Marista São José por ter desenhado tirinhas pornográficas tendo os padres como protagonistas. Mas seu maior divertimento na época era ler poesia, em especial Rimbaud.

Chegou a enviar um poema com dez páginas -“épico”, segundo ele- para Carlos Drummond de Andrade. Na apresentação do livro “Átila, Você É Bárbaro” -o primeiro publicado por Jaguar, em 1968-, Paulo Mendes Campos define o conteúdo como “poemas gráficos”.

Profissionalmente, estreou na revista Manchete em 1958, substituindo Borjalo, um craque do cartum sem palavras. Borjalo chamava-se Mauro Borba Lopes e sugeriu que Sérgio Jaguaribe virasse Jaguar.

Ao abandonar a influência do desenhista francês Trez e estudar em revistas importadas a obra de Saul Steinberg, André François e Ronald Searle, começava a nascer um estilo para o novo nome, com a capacidade de atrair o olhar para um desenho puro, sem ornato, limpo e que, paradoxalmente, revela as sujeiras e misérias do mundo.

Em 1959 foi trabalhar na sofisticada revista Senhor, onde criou a seção “O Jacaré” e conheceu Paulo Francis e Ivan Lessa, os quais, ao lado de Sérgio Porto, completaram sua formação de humorista com um pé no ceticismo e outro na ironia.

Passou pelas páginas da Revista da Semana, do Estado de S. Paulo e da Tribuna da Imprensa (Hélio Fernandes deve ter revisto sua opinião), desenhou para o suplemento “O Manequinho”, do Correio da Manhã, fez charges diárias na Última Hora, participou do Pif-Paf, a efêmera revista de Millôr de oito números, fechada pelos militares.

Com Ivan Lessa, idealizou os “Chopnics” -mistura de chope com beatnik–, uma história em quadrinhos ambientada em Ipanema. Era uma encomenda publicitária para o lançamento da cerveja Skol. O que seria um simples freelance para ganhar dinheiro acabou ligando a biografia de Jaguar ao surgimento do mito em torno do bairro da zona sul carioca.

Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe nasceu em 29 de fevereiro do ano bissexto de 1932, na praça da Cruz Vermelha, perto da Lapa, caminho para os subúrbios da zona norte. No entanto, o espírito do seu tempo não estava ali, e sim no território comportamental perto da praia que ele retratou como artista.

No livro “Ipanema – Se Não me Falha a Memória”, escreveu: “Era um lugar família. Tinha o sorvete do Morais, o Zé da Farmácia, as tertúlias na casa de Aníbal Machado, mas a sacanagem rolava solta, um saudável esporte como pegar jacaré e jogar frescobol”.

A fauna dos “Chopnics” se movimenta no paraíso em vias de desaparecer: Capitão Ipanema (calcado na figura do escrivão Hugo Leão de Castro, o Hugo Bidet); Doutor Carlinhos Bolkan, o vilão (mescla do cronista Carlinhos Oliveira com a atriz Florinda Bolkan); Sig, o ratinho verde e neurótico que mais tarde se transformou no símbolo do Pasquim; a depressiva Tânia da Fossa, o outro lado da garota de Ipanema, e a surrealista Anta de Tênis (“sou uma anta, tenho dois pares de tênis”).

Numa das tiras Jaguar usou a frase de Paulo Francis -“intelectual não vai à praia, intelectual bebe”- que eternamente lhe será atribuída. Hoje, depois da invasão das imobiliárias e o fim do provincianismo, substituído pelo estado de caos permanente que caracteriza todo o Rio, resta a Banda de Ipanema, que ele fundou, com Albino Pinheiro e Ferdy Carneiro.

Nos tempos da ditadura militar, surgiram Boris, o Vomitador -com a onomatopeia “Blearghh!” para identificar o som de um vômito–, e Bóris, O Homem-Tronco. Eram personagens brutais e escatológicos, mas Jaguar sempre soube emprestar-lhes um ar de ternura espantada. Eram, acima de tudo, muito engraçados.

Como também sua série de cartuns que ridiculariza as convenções e os lugares-comuns. Dois deles são antológicos: Cristo na cruz explicando-se para Maria Madalena: “Hoje não dá, Madalena, estou pregado!”.

Acorrentado ao rochedo, Prometeu ouve o lamento do abutre: “Pra mim é pior que para você, Prometeu. Eu detesto fígado!”.

A partir de 1969, viveu inteiramente a glória -em poucas semanas de existência, 200 mil exemplares vendidos em bancas-, o declínio e a queda do Pasquim. Teve a ideia, deu-lhe o nome e o deboche e foi o único que nele trabalhou, exceto nos dois meses em que passou preso em 1970, durante 22 anos, até o sepultamento em 1991.

No período das vacas magras, com toneladas de dívidas, chegou a morar na redação. Colaborou para as revistas Status e Drinks, nesta para reforçar o estoque do bar doméstico.

Enfim liberto do Pasquim, tornou-se editor de A Notícia, responsável por criar as manchetes de polícia escandalosas e sensacionalistas -nos intervalos entre um crime e outro, era visto lendo “As Cidades Invisíveis”, de Italo Calvino, num boteco perto do jornal.

Foi cronista de O Dia, exibindo um dos estilos mais sóbrios e objetivos da imprensa brasileira, sem deixar de ser brincalhão. Ao lado de Ziraldo, esteve nas revistas Bundas e Pasquim-21, tentativas malogradas de reviver a fibra do falecido hebdomadário.

Era um tímido torcedor do Vasco e, na juventude, velocista nos cem metros rasos. O Jaguar mais revelador como pessoa está no livro “Confesso que Bebi”, de 2001, título paródico, para ser lido com voz de bêbado, em cima das memórias de Pablo Neruda, “Confesso que Vivi”.

O subtítulo -“Memórias de um Amnésico Alcoólico”- é mais graça do que verdade. O autor se lembra de tudo: a peregrinação pelos bares, dos mais chiques aos pés-sujos; os porres de Underberg com o amigo Madame Satã; o dia em se perdeu em “Bangladesh”, a região ao redor da Central do Brasil.

Como diria o próprio Jaguar, antes da saideira: “Mas, olha, valeu”.