SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Esqueletos de 6.000 anos de idade descobertos perto da fronteira da França com a Alemanha podem representar o mais antigo caso de atrocidades de guerra cometidas em solo europeu.

Jogados numa espécie de vala comum, os indivíduos sofreram uma grande quantidade de ferimentos graves, muito acima do que seria necessário para matá-los. Além disso, na mesma cova, também foram descartados pedaços de braços cortados de outras vítimas.

Análises bioquímicas sugerem que as pessoas que sofreram essas atrocidades tinham vindo de outra região, com estilo de vida diferente daquele adotado pelos habitantes do local onde as mortes aconteceram. Por isso, os arqueólogos responsáveis pela descoberta argumentam que esses indivíduos podem ter sido invasores, derrotados em combate e depois torturados.

Detalhes sobre os achados estão em artigo que saiu, na última quarta-feira (20), no periódico científico americano Science Advances. O trabalho de pesquisa foi liderado por Teresa Fernández-Crespo, da Universidade de Valladolid, na Espanha, e é assinado também por especialistas da França, do Reino Unido e da Bélgica.

As covas circulares em que as vítimas foram lançadas ficam em Achenheim e Bergheim, duas localidades que hoje contam, cada uma, com cerca de 2.000 habitantes. Ambas ficam na região francesa da Alsácia (nordeste do país), cuja cidade mais importante é Estrasburgo.

A idade estimada para os esqueletos está entre 6.300 anos e 6.150 anos, durante o Neolítico. Trata-se do período em que a agricultura e a criação de animais estava se espalhando e se consolidando pelo território da Europa Ocidental. É um momento de crescimento populacional, aumento das diferenciações sociais (com o surgimento das primeiras elites sociais e militares) e também dos conflitos em diversas regiões do continente, inclusive com registros de canibalismo, como mostrou um estudo recente feito na Espanha.

No caso da Alsácia, já havia evidências de que esse período poderia ter sido palco de um processo de substituição de populações. Isso porque o estilo dos artefatos típicos da região, como os objetos de cerâmica, sofre uma mudança considerável por volta de 6.000 anos atrás, sendo substituído por objetos ligados a uma cultura surgida relativamente longe dali, na chamada bacia de Paris (área do centro-norte da França que inclui, é claro, a capital do país). Um processo como esse poderia envolver conflitos armados, embora nem sempre uma coisa acompanhe a outra.

Outras pistas sobre uma possível onda de combates nesse momento da pré-história envolvem o aparecimento de vilas fortificadas, uma maior concentração dos assentamentos em menos lugares (talvez para reunir ao máximo a resistência a invasores e também para evitar moradias isoladas, mais vulneráveis a ataques) e, claro, indícios diretos de violência identificados em sepultamentos.

No caso de Achenheim e Bergheim, nas grandes covas circulares foram jogados cadáveres de vários indivíduos (seis no primeiro caso, oito no segundo) com grande quantidade de fraturas que foram provocadas no chamado momento “perimortem”, como dizem os antropólogos -ou seja, logo antes de morrer e sem sinais de cicatrização.

São fraturas no crânio, na mandíbula, nos pés, nas pernas, mãos, clavículas e costelas -um nível de violência que vai muito além do necessário para simplesmente executar a vítima, designado pelos especialistas com o termo técnico “overkill” (literalmente, algo como “ir além de matar”).

Além disso, a maior parte dos indivíduos que receberam esse tratamento terrível são adultos e adolescentes do sexo masculino. Trata-se de uma fração da população que, em quase todos os lugares e épocas, é a mais presente em confrontos armados, embora também haja crianças entre os mortos nos sítios arqueológicos estudados. Por fim, há os braços decepados, tanto na altura do úmero (o osso entre o ombro e o cotovelo) quanto na do rádio e da ulna (os ossos entre o cotovelo e as mãos).

Fernández-Crespo e seus colegas usaram amostras dos ossos e dos dentes de ambas as chacinas, bem como de outros sítios arqueológicos contemporâneos da região, para tentar estimar qual era a origem das pessoas que sofreram essas atrocidades e como se alimentavam ao longo da vida.

É possível ter uma ideia disso com base na proporção de certos isótopos (variantes) de elementos químicos como carbono, nitrogênio, oxigênio, enxofre e estrôncio, que variam de acordo com a dieta da pessoa em diferentes momentos da vida e também, em alguns casos, conforme a composição química do solo e da água da região onde alguém viveu. A ideia da equipe era separar as amostras em dois grupos, um formado por vítimas dos massacres e outros por esqueletos encontrados em sepulturas normais da Alsácia do Neolítico, e verificar se havia diferenças sistemáticas entre eles.

De fato, foi o que aconteceu. A proporção dos isótopos sugere que as pessoas massacradas levavam uma vida mais móvel do que os indivíduos da região -deslocando-se mais pelo interior das atuais França e Alemanha, provavelmente-, além de ter uma dieta mais variável. Além disso, é possível que sofressem mais estresse fisiológico, talvez ligado justamente a essa vida nômade e incerta.

Além disso, os esqueletos cheios de fraturas, a julgar pelos isótopos de enxofre, talvez tivessem vindo do sul da Alsácia, e não do norte da região, de onde vieram as amostras dos moradores sepultados normalmente. Essa constatação, porém, não vale para os braços decepados, curiosamente, que têm composição similar aos do norte da Alsácia.

Os pesquisadores especulam que os braços podem ter sido “troféus” do inimigo morto no campo de batalha, enquanto os corpos inteiros talvez fossem adversários capturados e trazidos para o vilarejo dos vitoriosos, onde teriam sido submetidos a torturas públicas e depois enterrados.