SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O impacto das mudanças que a extrema direita está aplicando ao governo dos Estados Unidos sob Donald Trump tende a ser permanente, integrando um projeto que mira décadas de poder.
Já o apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no contexto da disputa tarifária com o Brasil é um surpreendente desvio de rota provocado pelo gosto do grupo por guerras culturais, mas não faz parte de um plano maior e coerente.
As opiniões são de um renomado especialista na ascensão da direita populista no país, David A. Graham, e foram expressas à Folha de S.Paulo em uma conversa por vídeo na quarta passada (20).
Repórter e ex-editor de Política da veneranda revista The Atlantic, desde 2011 ele toma o pulso de Washington para a publicação, associada ao lado liberal-progressista no espectro americano.
Neste ano, lançou um best-seller sobre o documento que guia os ideológicos em torno de Trump, “O Projeto – Como a extrema direita está transformando os Estados Unidos”, que agora chega ao Brasil pela Zahar, selo da Companhia das Letras (R$ 79,90, 176 págs.).
Nele, Graham disseca de forma didática as 920 páginas do Projeto 2025, o mapa do caminho desenhado por conservadores radicais da Fundação Heritage para a tomada do poder nos EUA. “Na campanha de 2024, eu só tinha lido trechos. Achei importante voltar ao tema”, diz.
“Em grande parte, eles tiveram sucesso em assumir o controle do governo federal muito mais rapidamente do que eu esperava. Demitiram dezenas de milhares de servidores, converteram nomeações políticas. Eles conseguiram que a Suprema Corte os permitisse demitir os chefes de agências autônomas. Eliminaram a independência do Departamento de Justiça”, enumera.
Para ele, isso é só o começo. “Acho que estamos passando da fase de tomada de poder a de políticas, eliminando a regulamentação ambiental ou fechando o Departamento de Educação”, exemplifica. Adversários têm sido objeto de pressão, como na batida do FBI contra John Bolton, ex-assessor de Trump que virou seu crítico.
E o que preconiza o Projeto 2025? A exemplo do trabalho do guru do vice-presidente J. D. Vance, Patrick Deneen, os autores defendem um poder imperial à Presidência e um Estado desossado e aparelhado por zelotes, em que valores nacionalistas e cristãos são impostos à sociedade, como se vê na briga de Trump com universidades e museus.
O principal coautor do projeto, Russel Vought, foi nomeado para o poderoso Escritório de Gestão e Orçamento, um posto estratégico na Casa Branca, e outras pessoas ligadas à iniciativa estão no governo.
“Eles veem Trump como um instrumento. O primeiro mandato inspirou a imaginação deles. Viram que há muitas coisas nas quais Trump não está interessado”, diz Graham.
“Ele se importa muito com tarifas, com reconhecimento pessoal. Ele não tem muitos pensamentos sobre muitas das outras partes do governo. Então, eles viram uma oportunidade para fornecer a ele caminhos e implementar sua agenda”, completa.
A descrição lembra o que os militares da reserva apoiadores da candidatura de Jair Bolsonaro, em 2018, faziam do capitão reformado –uma espécie de marionete. Como no Brasil, Graham reconhece que, na prática, há tensionamentos, dado o caráter mercurial de Trump, mas diz que o grupo avança.
“Eu acho que muitas dessas mudanças são permanentes. Mesmo que reverta os decretos, você já demitiu todos esses servidores e não conseguirá recontratá-los rapidamente. Não se pode restabelecer departamentos e agências fechados”, avalia.
Segundo o autor, “será muito difícil para qualquer presidente abrir mão dos poderes uma vez que os tenha adquirido”. “O dano, se quiser chamar assim, é permanente. O próximo presidente herdará um governo muito diferente”, afirmou, ponderando que isso permitirá à sociedade americana repensar sua governança.
Ele ironiza o papel do bilionário Elon Musk, que liderou uma agência criada para desmontar o governo, mas foi sacado assim que criticou o ímpeto gastador de Trump. “Eu acho que ele foi um idiota útil para todos eles”, afirma Graham. Ele duvida de um futuro político para o empresário, que ensaiou criar um partido.
Há contradições no arranjo. O Projeto 2025 e o discurso de Trump sempre defenderam a linha isolacionista, mas, no poder, o americano age de forma diferente.
“Trump, durante a campanha, falou em tarifas como ferramenta econômica. E agora vemos a influência das pessoas do Projeto 2025, que querem tratar tudo como guerra cultural. Não há um caso comercial para tarifas sobre o Brasil”, disse.
Para ele, as sobretaxas de importação de 50% aplicadas ao Brasil e associadas à exigência do fim do julgamento de Bolsonaro na trama golpista de 2022 são uma surpresa. “Eles parecem tão desinteressados no mundo.”
Ao mesmo tempo, “eles estão preocupados com o discurso conservador nas mídias sociais, com Judiciários independentes”. “Assim, faz sentido para eles trabalhar para apoiar Bolsonaro, mesmo que esteja fora de sua área normal de atuação”, completa.
Para Graham, contudo, nada disso é um plano consistente. “Todas essas coisas são improvisadas. Trump simplesmente fica chateado com drogas e decide que vai enviar destróieres sem pensar em como isso se desenrolará”, disse, acerca do envio de navios para pressionar a Venezuela sob a justificativa de que Nicolás Maduro é um narcoditador.
Com efeito, o seu livro mostra como o Projeto 2025 dá pouca atenção à política externa, focando a China. Graham também destaca a personalidade de Trump.
“A obsessão pelo Nobel da Paz é algo que afeta como ele pensa sobre cada conflito de política externa agora. Parece uma obsessão com Barack Obama”, afirma, em referência ao prêmio ganho pelo democrata em seu primeiro ano no governo.
Isso acaba enfrentando a realidade de questões duras, como a Guerra da Ucrânia, na qual as iniciativas de Trump têm gerado mais calor do que luz. “Ele não se importa pela substância do acordo. Ele só quer o acordo”, diz.
Ainda assim, Graham vê, por ora, um caminho livre a Trump, mesmo com aprovação baixa e a provável vitória da oposição nas eleições de meio de mandato para o Congresso no ano que vem. E a culpa é da própria esquerda americana, o Partido Democrata.
“Você vê o pessoal do Projeto 2025 usando o ‘woke’ de forma muito eficaz. Pegam algo que é de fato impopular, algumas dessas políticas, e então usam isso para avançar muito mais contra a legislação de direitos civis”, diz.
“Woke” é um termo originário das lutas identitárias nos EUA que significa acordado, no caso para questões sociais. Os excessos desse embate criaram uma bandeira para os conservadores. “A extrema direita transformou isso em arma”, aponta o autor.
“Eu acho que é uma falha da esquerda. Eles não levaram Trump tão a sério em seu primeiro mandato, o trataram como uma anomalia que iria embora. Outra obviamente foi a área de candidatos. Foram pegos de surpresa e não estavam preparados para resistir”, avalia, de forma não muito distante do caso brasileiro em 2018.
Nos EUA, a esquerda democrata tateia, como no lançamento da candidatura de um radical para prefeito de Nova York, Zohran Mamdani, o que sugere uma aposta na polarização. “Vejo os democratas tentando imitar Trump. São muito reativos”, diz.
Vance é o sucessor natural de Trump no pleito de 2028? “Ele é muito mais alinhado à extrema direita. Mas eles são meio mercenários nisso, não importa quem está à frente, desde que ele esteja seguindo suas políticas. É um projeto de décadas”, resume o jornalista.
No mandato anterior, havia integrantes do governo que já tinham servido a outras administrações, “pessoas que podiam salvar o país de Trump”. Agora, rejeitados de outrora por incapacidade, como a secretária Pam Bondi (Justiça), estão no poder. A barra baixou, sustenta Graham, afinal de contas um condenado está na Casa Branca -em 2024, o republicano foi considerado culpado nas 34 acusações de falsificação de registros empresariais para encobrir pagamentos à atriz pornô Stormy Daniels.
Trump, para surpresa de ninguém, sempre buscou se desvincular do Projeto 2025, ciente da impopularidade da interferência na vida privada que os tradicionalistas preconizam. Mas o autor acredita que isso importa pouco ao grupo, que não é refratário a intimidar o eleitorado.
O emprego de forças federais nas ruas da Califórnia e de Washington pode ser um prenúncio disso? “Há um mês eu teria dito não. Agora, não sei onde isso vai terminar porque não vejo ninguém resistindo”, afirmou, apontando para o perigoso precedente de estados republicanos enviando tropas, e democratas, não.