SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os últimos dez anos foram marcados por uma reviravolta na qualidade do fornecimento de energia elétrica na área de concessão da Enel SP na região metropolitana de São Paulo. Depois de seis anos com o consumidor sentindo melhoras contínuas, com redução no número de apagões e também do período sem energia, a percepção em relação à qualidade do serviço piorou rapidamente. O tempo médio que o cidadão fica no escuro triplicou, passando de cerca de 7 horas sem luz por ano, em 2021, para quase 22 horas, no ano passado.
A evolução da oferta de energia elétrica foi mapeada a pedido da Folha pela empresa Daimon, especializada em serviços no setor. Foram compilados dois indicadores oficiais divulgados pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), organismo público responsável por monitorar, cobrar e, se necessário, punir as fornecedoras.
As métricas são internacionais, com uma diferença: enquanto o Brasil ainda considera o tempo no escuro em horas por ano, vários países na União Europeia e Estados Unidos registram o dado em minutos. No Japão, a contagem é em segundos. Essa diferença mostra o grau de eficiência para manter a luz ligada em outras partes do mundo.
Na lista dos 15 locais onde o serviço mais piorou, de 2020 a 2024, nove estão na zona sul da capital. A região junto ao bairro Jardim São Luís foi a mais afetada. O tempo médio sem luz, que era de pouco mais de 7 horas por ano, subiu para 51 horas, ou seja, mais de dois dias.
Em áreas de Campo Belo, Campo Grande, Cidade Ademar, Jabaquara e Santo Amaro, o tempo sem luz passou de 7 horas para 42 horas.
Com evolução ruim, mas em menor grau, aparecem pontos na zona leste, como parte da Mooca, onde o tempo de espera pela religação da energia também foi de 7 para 42 horas. Na zona norte, o bairro do Limão, a espera foi de 5 horas sem luz para 13 horas.
Alguns locais tiveram variação pequena, porque o serviço já era ruim. Nesse caso, áreas na zona sul, outra vez, são destaque. Lá fica a recordista em tempo no escuro de 2024, o Jardim Germânia. O tempo de espera para a religação da energia somou mais de 66 horas no ano passado. Sete interrupções geraram o equivalente a quase três dias sem luz. Tem gente no bairro que até comprou gerador.
Rildo Barbosa Vieira, 53, dono de um mercadinho, conta que já deixa o aparelho preparado quando ameaça chover. “Nos primeiros problemas que eu tive com energia, comprei um pequeno. Depois, trabalhei para comprar outro”, explicou à reportagem.
Em novembro de 2023, Vieira ficou cinco dias esperando o restabelecimento do serviço. Segundo o empresário, o problema está na fiação antiga e frouxa da rede que abastece o mercadinho.
A dona de casa Glória Gomes, 76, vive há mais de três décadas em outra parte do bairro. Conta que a região sofre constantemente com quedas de energia e já desistiu de acionar a empresa. “Eles falam que demora um pouco, mas chega. Como agora é sempre assim, eu não ligo mais.”
O município que somou mais tempo no escuro no ano passado foi Cotia, ao sudoeste da capital, com quase 64 horas. Outro destaque foi Embu das Artes, com 54 horas sem luz –mais de dois dias.
Anderson Moura, 37, vive há 11 anos no Vale do Sol, a 3 km do centro de Embu. Conta que o serviço piorou nos últimos três anos. Chegou a ficar sete dias sem fornecimento em outubro do ano passado. Na sua avaliação, falta obra estrutural para dimensionar a oferta de energia. Sua rua é bem arborizada, e ele vê os fios em contato com as árvores.
“Vira e mexe, ouvimos aquele barulho do transformador desarmando”, conta. Como a família faz trabalho remoto, e a esposa dele, Luciane Moura, 35, é diabética e precisa manter a insulina refrigerada, também compraram um pequeno gerador.
Na zona oeste, a retomada do fornecimento é mais ágil, mas, em muitos locais, o tempo de espera passa de um dia. É o caso das regiões no entorno da Raposo Tavares (39 horas por ano), junto à avenida Presidente Juscelino Kubitschek (35 horas), e nos bairros Butantã (27 horas) e Sumaré (25 horas).
O levantamento atesta que o fornecimento é mais estável nos locais com rede subterrânea. A região da rua Augusta, por exemplo, com 96% de rede enterrada, ficou menos de duas horas no escuro no ano passado.
Itaim Bibi, na zona oeste, somou quase 26 horas no escuro. Mas áreas desse bairro nas proximidades da rua Tabapuã, que tem 75% da rede enterrada, é o local que menos tempo ficou sem luz em toda a área de concessão. No ano passado, a soma de tempo no escuro foi de apenas 48 minutos.
Saiba quanto tempo você ficou sem energia elétrica em 2024
Segundo o diretor-geral da Daimon, Carlos Barioni, os indicadores atestam que a piora no fornecimento tem relação com a mudança climática. O aumento do tempo médio no escuro acompanha o crescimento no registro de tempestades na região metropolitana, com destaque para os temporais em novembro de 2023 e outubro de 2024.
“Se você observar a evolução dos indicadores vai ver que o tempo sem energia segue aumentando muito, mas o número de ocorrências não muda tão radicalmente. Isso indica que o número de eventos não aumentou tanto assim, mas a força do impactos deles é muito maior, afetando a retomada do fornecimento”, explica.
“Na prática, isso mostra que distribuidora, órgão regulador e entes públicos precisam estar preparados para uma nova realidade.”
O engenheiro eletrotécnico e advogado Sidney Simonaggio tem 45 anos de atuação no setor de energia. Passou por inúmeras distribuidoras, inclusive a Enel SP, de onde saiu há quatro anos. Segundo ele, apesar de o debate sobre como proteger a rede das mudanças climáticas ter se concentrado na necessidade de ampliar a rede enterrada, ele defende o cuidado extra com a rede aérea dos grandes centros, porque essa é a principal via de fornecimento.
“Se você for passear na na 5ª Avenida, em Nova York, vai ver que está tudo enterrado, mas na ponta da linha é fio aéreo –é assim na maior parte das grandes cidades”, explica.
Simonaggio diz que é preciso aposentar o antigo sistema de cruzeta, com três fios nus, onde um simples galho pode causar curto-circuito. No lugar, entra a rede compacta, com cabos encapados, mais resistentes ao contato com a vegetação. Para agilizar a localização de falhas, entre os aliados estão medidores digitais nas residências, que sinalizam os problemas, e os censores de correntes, especialmente nas bifurcações da rede, que indicam rapidamente a parte desligada.
No entanto, nenhuma sofisticação, alerta, substitui o trabalho humano, e a equipe de campo deve ser constituída para atender o pior cenário. Enquanto a tempestade não vem, quem estiver ocioso cuida da manutenção preventiva, o que também deixa a rede mais robusta para os momentos difíceis. “No fim, alguém vai ter que ir lá, na origem do problema, e subir num poste.”
Em retrospecto, o diretor-geral da Aneel, Sandoval Feitosa, disse à Folha que os eventos climáticos dos últimos dois anos no Sudeste e Sul, especialmente as tempestades em São Paulo e as enchentes no Rio Grade do Sul, trouxeram importantes lições.
“As empresas estavam preparadas para aquilo? Não, não estavam. Mas o poder público também não estava. A gente tinha, naquele momento, uma completa desarticulação dos órgãos de defesa de municípios e de Estado”, afirma.
Ainda assim, crises ajudam a aperfeiçoar a resposta. “No momento em que há esses eventos, você tem distúrbios no tráfego urbano, problemas de segurança física, inundações, engarrafamentos gigantescos, queda de árvores, queda de edificações. Um caos se instaura, e é importante é que as instituições respondam. Não dá para colocar uma crise em São Paulo somente na conta da concessionária de energia.”
Segundo ele, a Aneel tomou várias medidas após os apagões em São Paulo. Multou a Enel pela demora em restituir a energia. Apertou a regra de compensação para os clientes –quanto maior tempo no escuro, maior valor que a distribuidora deve pagar ao consumidor pela espera da energia. Mudou a regulamentação, inclusive estabelecendo normas para o compartilhamento de pessoal entre distribuidoras. O desempenho da empresa, na avaliação da agência, já sinalizou melhoras neste início de 2025.
Das questões que mereceram atenção especial e seguem monitoradas de perto, a mão de obra é uma delas.
“Houve a necessidade de uma contratação maciça de equipes, havia problemas de gestão para otimizar o trabalho, e a Enel SP precisou de um tempo para contratar porque estava com dificuldade de achar pessoal.” Segundo a empresa, de 2024 a março deste ano, foram contratados 1.200 profissionais.
Outra é a poda das árvores. “Toque de árvore em rede elétrica é uma das principais causas de interrupção do serviço, então, não tem jeito, há necessidade de uma articulação muito bem afinada, um protocolo muito bem definido, entre a prefeitura e a distribuidora”, diz Feitosa.
Como mostrou o Painel, a gestão Ricardo Nunes ajuizou uma ação civil pública contra a renovação da concessão da Enel SP e, entre os argumentos, a administração municipal afirmou que, de 2020 a janeiro de 2024, as subprefeituras pediram 25.037 auxílios para podas ou remover árvores em contato ou perto da rede elétrica. Desse total, a companhia deixou passar o prazo de 90 dias (30 para manifestação, 60 para execução ou outra providência) em 11.713 casos.
A Enel não comentou a ação da prefeitura. Informou que volume de podas preventivas dobrou no ano passado em relação a 2023, passando de 600 mil. Neste ano, já realizou 372 mil podas.
O diretor de Operação e Manutenção da Enel SP, Márcio Jardim, relembrou que os ventos nos dois temporais que causaram mais estragos, e pioraram a percepção do consumidor em relação aos serviços, foram atípicos. Superaram os 100 km/h, muito acima da média para a metrópole. Mas ele diz que a empresa teve um aprendizado importante sobre como enfrentar adversidades, e que isso já aparece nos resultados. Em 2023, conseguiram restabelecer o fornecimento para 66% dos clientes em até 24 horas. No temporal do ano passado, essa parcela subiu para 80%.
Entre o verão de 2024 e o verão de 2025, também houve melhora em outro indicador, o TMA (Tempo Médio de Atendimento), que é calculado desde a abertura do chamado pelo cliente até o restabelecimento da energia. A empresa diz que caiu pela metade.
Jardim reforça que a empresa anunciou um volume recorde de investimentos para os próximos três anos, de R$ 10,4 bilhões. O foco é ampliar a modernização e a resiliência da rede elétrica, justamente para enfrentar a mudança climática. Todos os bairros são contemplados com um plano da companhia para reforçar a operação. Já foram instalados 100 religadores para automação da rede e montada a maior frota de geradores da América Latina, com 900 equipamentos.
ENTENDA OS INDICADORES
A reportagem foi baseada em dois indicadores que medem a qualidade do fornecimento de energia. O principal foi o DEC (Duração Equivalente por Consumidor), que avalia o tempo médio, em horas por ano, que a pessoa fica sem energia elétrica em casa. Considerou ainda o FEC (Frequência Equivalente por Consumidor), que conta o número médio de vezes no ano em que a luz caiu (leia detalhes sobre os indicadores).
Esses indicadores são calculados não por bairros, mas por conjuntos elétricos. Porém, a pesquisa cruzou dados para associar conjuntos e bairros de forma que o leitor pudesse ver o desempenho da oferta de energia na área onde mora.
Existem dois tipos de DEC e FEC. A versão mais usada e divulgada é o regulatório, que exclui o efeito de tempestades atípicas, considerando que a distribuidora não pode ser culpada pelo que acontece numa virada inesperada do tempo. Outra versão dos indicadores –usada nesta reportagem– considera a visão do cliente, que retrata o que as pessoas sentiram em casa.
O diretor-geral da Daimon, Carlos Barioni, concorda com as duas métricas. Porém explica que, no atual cenário, é preciso dar atenção aos indicadores na visão do cliente para que as autoridades possam dimensionar o tamanho do desafio criado pelas mudanças climáticas.
Na avaliação da Enel SP, um DEC sem expurgo, por sua vez, acumula os efeitos desses dois eventos climáticos atípicos, em novembro de 2023 e outubro de 2024, e não reflete o esforço da empresa.
Atualmente, não há meta para indicadores na visão do cliente. A Aneel avalia criação considerando os eventos extremos. A meta regulatória para a Enel SP para este ano, por sua vez, é 7h.