SÃO PAULO, (FOLHAPRESS) – Paul Tergat, 56, chegou a São Paulo nesta semana sem a pressa nos passos dos dias em que atravessava a cidade em velocidade de campeão. No ano do centenário da Corrida de São Silvestre, não precisou posicionar-se na largada para ser reconhecido. Como maior vencedor masculino da tradicional prova de rua paulistana, o ex-atleta viajou para celebrar suas cinco vitórias, seu legado e o vínculo entre o Quênia e a corrida de rua –e para compromissos comerciais.

“Celebrar cem anos da São Silvestre é uma oportunidade de ouro. Cada corrida foi única e histórica para mim”, disse à Folha o queniano, que ainda se impressiona com as dezenas de milhares de pessoas, entre profissionais e amadores, que se aventuram na prova todos os anos. “É muito singular, não tem nada igual no mundo.”

Seu encanto pelas multidões correndo vem desde a infância. No Quênia, correr é mais do que um esporte. É um estilo de vida e, muitas vezes, uma forma de sobrevivência. Crianças praticam a modalidade desde cedo, quase involuntariamente, como meio de locomoção diante da falta de transporte coletivo. É comum que percorram de 5 km a 10 km diariamente para ir à escola.

Foi assim para Tergat, nascido em Kabaernet, na região do Grande Vale do Rift, berço de corredores de longa distância na África Oriental. Ele chegou a pensar em abandonar os estudos, mas encontrou incentivo no Programa Mundial de Alimentos da ONU (Organização das Nações Unidas), implementado em 1977.

“Eu cresci em uma região muito remota e nunca imaginei que poderia ser campeão. Tropecei na minha carreira, mas descobri meu talento no caminho”, contou.

Apesar de ter tornado-se um atleta de elite, ele começou relativamente tarde. Tinha 20 anos quando participou de sua primeira prova. Ainda assim, virou um dos maiores fundistas do país.

Desde 2011, o Quênia detém o recorde da maratona, quebrado em sequência por cinco corredores diferentes. Tergat já teve essa marca, estabelecida em 2003, na prova de Berlim, quando se tornou o primeiro queniano a alcançar o recorde mundial.

Sua galeria de conquistas inclui cinco títulos mundiais consecutivos de cross-country (1995 a 1999), duas medalhas de prata em Jogos Olímpicos (Atlanta-1996 e Sydney-2000), três no Mundial (10 mil metros) e cinco vitórias na São Silvestre (1995, 1996, 1998, 1999 e 2000).

Tergat diz agora se dedicar à defesa do planeta. Contra as mudanças climáticas e em prol de um futuro sustentável, transformou suas conquistas pessoais em uma bandeira coletiva.

“A sustentabilidade é fundamental para a prática esportiva e para o meio ambiente. Se os atletas treinam em um ambiente poluído, seu desempenho diminui”, alertou. “No Quênia, realizamos fóruns em escolas e comunidades para garantir o plantio de árvores, pensando nas próximas gerações.”

Presidente do Comitê Olímpico do Quênia desde 2017, o ex-competidor tem como meta garantir que o país continue formando campeões.

Apesar da renda per capita anual equivalente a pouco mais de US$ 2 mil (R$ 10,9 mil), o Quênia tem características que atraem corredores do mundo todo. Há treinadores de qualidade e o benefício da atividade sob o ar rarefeito da altitude de 2.400 metros acima do nível do mar. A geografia oferece ainda variadas condições de treino, em estradas de terra, em trilhas com pedras, no meio de florestas, em morros, na lama, no calor e na chuva.

Segundo Tergat, também é mais fácil se concentrar nos treinamentos porque o acesso à internet é bastante problemático. Para os corredores, diz ele, isso acaba sendo uma forma de evitar distrações.

“No Quênia, muitos atletas vêm de regiões remotas e se concentram mais no treino e na carreira do que nas redes sociais”, disse o campeão, que participou nesta semana do lançamento de um novo tênis da Fila, empresa de material esportivo que o patrocina há 25 anos.

Para ele, esse distanciamento das redes é parte do segredo do sucesso dos quenianos em corridas de rua e em maratonas. “Devemos ser gratos pela evolução da tecnologia, mas, na nossa época, a vida era mais simples, sem complicações.”