WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – A escala de trabalho é informalmente chamada de “996”, uma referência à jornada de serviço das 9h às 21h, seis vezes por semana. O modelo, que foi amplamente usado -e contestado- na China, passou a ser incorporado por startups nos Estados Unidos, mesmo diante de discussões mundiais sobre a melhoria no ambiente de trabalho.

Empresas com sede no Vale do Silício, na Califórnia, epicentro das jovens companhias de tecnologia e inovação, estão recrutando trabalhadores dispostos a atuar sob essa rotina intensa.

Na visão de alguns, o modelo é essencial para o crescimento acelerado de startups, especialmente em áreas altamente competitivas como a inteligência artificial.

Amrita Bhasin, CEO da startup de logística com foco em um tipo de inteligência artificial, disse à revista americana Wired que é comum os empreendedores da Bay Area (baía de San Francisco), que compreende esse polo de tecnologia, recorrerem à jornada para garantir crescimento. “Nos dois primeiros anos da sua startup, você meio que precisa seguir o modelo 996”, disse.

Em uma publicação no LinkedIn há dois meses, Martin Mignot, sócio da Index Ventures, empresa de capital de risco, afirmou que o modelo 996 é “o novo padrão” entre as jovens empresas. “Esta é uma oportunidade que só aparece uma vez por geração, e está se movendo numa velocidade alucinante. Cada minuto fora do produto é um custo alto demais”, escreveu.

Mignot compartilhou exemplos de fundadores que adotaram rotinas radicais para manter o foco e a produtividade. Um deles mudou sua empresa para uma região isolada da Bay Area, longe de distrações, e avisa logo aos candidatos: “Trabalhamos em modelo 996. Se você tem hobbies que competem com essa missão, esta vaga não é para você.”

Outro instituiu apenas duas semanas fixas de férias coletivas por ano para evitar fragmentação da produtividade, e mais da metade da equipe trabalha voluntariamente aos fins de semana. “Estamos vendo esse nível de comprometimento não só no Vale do Silício, mas também em Nova York e em várias equipes europeias”, afirmou o sócio da Index.

Segundo ele, as empresas de capital de risco estão começando a seguir o ritmo das companhias de tecnologia, com investidores trabalhando aos finais de semana.

Para Mignot, esse modelo atrai especialmente jovens sem filhos ou grandes responsabilidades familiares, dispostos a colocar a vida pessoal em segundo plano para aproveitar o momento.

“O desafio, para as empresas que conseguirem decolar, será manter a qualidade e a velocidade depois da fase inicial. É aí que entram processos e sistemas para tornar o insustentável em algo sustentável”, disse Mignot, citando a Revolut como exemplo de uma empresa que começou com o 996 e evoluiu para uma cultura estruturada e de alta performance.

Adrian Kinnersley, que tem uma empresa de recrutamento e seleção, afirmou à Wired que a adoção desse modelo já é um critério frequente na seleção de candidatos.

“Está se tornando cada vez mais comum”, disse. Segundo Kinnersley, muitas empresas solicitam que ele verifique, logo no início do processo, se o candidato está disposto a trabalhar até 72 horas semanais.

“A Califórnia é o epicentro da IA e de onde muito dessa cultura 996 está vindo –e também é o estado com a legislação trabalhista mais favorável ao trabalhador em todos os EUA”, afirmou o executivo. Ele aponta que a cultura 996 está em aparente desacordo com as legislações americanas, mas avalia haver “uma histeria para criar produtos de inteligência artificial”.

“Muitos jovens extremamente inteligentes, em seu fervor, estão esquecendo todos os riscos que estão assumindo –todos os passivos enormes que estão criando”, completou.

Ainda assim, ele apontou que dificilmente a prática dessa jornada de trabalho vai embora e afirma que inclusive registrou há pouco o domínio “996careers.com”.

Apesar da popularidade no setor de tecnologia dos EUA, o modelo 996 é alvo de duras críticas. Na China, ele foi associado a diversos casos de exaustão extrema e até de mortes de trabalhadores –situação que gerou forte comoção pública e intensificou o debate sobre a precarização das relações de trabalho.

Casos exemplares de colapso por excesso de horas trabalhadas colocaram o regime sob escrutínio. Em resposta, em 2021, o Supremo Tribunal Popular da China e o Ministério de Recursos Humanos e Segurança Social declararam ilegal a prática do 996.

Em tese, a corte nem precisaria se manifestar, já que a legislação trabalhista chinesa limita a jornada a oito horas diárias e 44 horas semanais, com até 36 horas extras por mês. Mas com a popularização da jornada, houve reação da população e o Supremo precisou se manifestar.

Ainda assim, muitas empresas continuaram adotando o modelo de maneira informal, evidenciando a dificuldade em romper com uma cultura que valoriza dedicação extrema.

Esse cenário contribuiu para um êxodo de profissionais de grandes centros como Xangai e Shenzhen em 2023, conforme apontado por dados da consultoria MetroDataTech. Muitos migraram para cidades menores em busca de uma vida menos desgastante.