PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Na sala com móveis improvisados, a técnica de enfermagem Vânia Lúcia Fábian, 72, conta que perdeu a mobília e a paz no dia em que saiu de casa com a água acima dos joelhos. Moradora de uma das localidades de Porto Alegre mais afetadas pela enchente histórica que provocou 185 mortes em maio de 2024 no Rio Grande do Sul, ela mostra as galochas novas que mantém ao lado da porta e explica que recusa antidepressivos porque prefere se manter acordada. “Eu vivo com medo.”
No mesmo do 4º Distrito onde mora Vânia, uma área pós-industrial repleta de habitações precárias às margens do delta do Jacuí, o temor de novas enchentes também estava presente nas conversas entre políticos, empresários e arquitetos reunidos no galpão em ruínas da desativada fábrica de tecidos Guahyba.
Realizado às vésperas da audiência pública do último dia 9 de agosto em que a gestão do prefeito Sebastião Melo (MDB) apresentou sua proposta para o Plano Diretor -lei que apontará diretrizes para o desenvolvimento municipal nos próximos dez anos-, o terceiro encontro anual do Instituto Cidades Responsivas tateava alinhamento entre setores público e privado na busca de soluções para a reconstrução da capital gaúcha.
O tom consonante com a proposta da prefeitura, que prevê estímulos econômicos e maior liberdade para o mercado imobiliário atuar, não disfarçava a desconfiança de que empresários e investidores continuarão receosos em avançar com projetos milionários enquanto não tiverem certeza de que o município tem um plano robusto para evitar que 30% da cidade fique submersa.
Atendido pelo metrô, ao lado do aeroporto Internacional Salgado Filho e colado em bairros valorizados da cidade, o 4º Distrito recebe na proposta do Plano Diretor permissão para ter os maiores edifícios possíveis na cidade, além de isenções em tributos municipais.
No vizinho Centro Histórico, a atualização das regras ainda prevê reformas de prédios antigos para que sejam convertidos em estúdios interessantes para o segmento de locação de curta temporada, uma tentativa de ampliar a oferta de hospedagens e manter na cidade por mais tempo turistas que chegam pelo aeroporto e rumam para a serra gaúcha no inverno.
Uma combinação de estímulos inspirada sobretudo no regramento que há uma década vem provocando intensa verticalização dos bairros mais estruturados da capital do estado de São Paulo.
“Mas enquanto não resolver a drenagem, nada vai andar”, diz a arquiteta Rafaela Koehler, pesquisadora dos efeitos das legislações urbanas no território.
Secretário de Meio Ambiente e Urbanismo, Germano Bremm diz que o plano para a região vai muito além da liberação de prédios com até 130 metros. Ele cita investimentos de R$ 50 milhões já aplicados para reforma do sistema contra enchentes e a aprovação de R$ 1 bilhão em financiamento do Banco Mundial para uma ampla requalificação.
A incerteza sobre a contenção das águas não é, porém, a única questão para que o mercado permaneça pouco interessado naquele ponto da cidade, segundo Lucas Obino, presidente da Ospa, grupo empresarial de arquitetura cujo braço educacional é o Cidades Responsivas.
Ele diz que é preciso demonstrar que a capital gaúcha possui capacidade para se tornar um importante destino de turismo e negócios para o Brasil e vizinhos como Argentina e Uruguai. “Há uma questão que antecede [a enchente], que é o entendimento do potencial do 4º Distrito e de Porto Alegre”, afirma Obino.
O desafio mencionado pelo empresário está escorado, de fato, em uma preocupação anterior à tragédia climática: pode estar começando a faltar gente em Porto Alegre. O número de munícipes caiu 5,4% entre 2010 e 2022, de 1,41 milhão para 1,33 milhão de pessoas. No mesmo intervalo, a população do país cresceu 6,5%, segundo dados do IBGE.
Tão preocupante quanto a perda de 76,5 mil moradores é a constatação de que os que ficam são os mais velhos. A idade mediana dos porto-alegrenses é de 39 anos, enquanto a do conjunto de brasileiros é de 35.
O índice de envelhecimento da capital gaúcha é quase duas vezes maior do que o do país. Há na cidade 98 residentes com 65 anos ou mais para cada grupo de cem moradores de até 14 anos. No Brasil, a relação é de 55 idosos por cem crianças.
Não por acaso, o ex-urbanista-chefe do Banco Mundial, Alain Bertaud, destacou na principal palestra do evento que o envelhecimento populacional das grandes economias ocidentais forçará prefeitos a tornarem suas cidades economicamente atrativas para os jovens. “As cidades vão competir por pessoas”, afirmou.
A contribuição do urbanismo nessa disputa, segundo o arquiteto francês, é exatamente a que estava ocorrendo no galpão com paredes com marcas de lama acima dos 2 m de altura: dar novos usos a prédios e áreas degradadas.
Basta atravessar a rua para ver na prática o que prega Bertaud. Na antiga instalação industrial do grupo Renner funciona desde 2021 o Instituto Caldeira. O espaço de 22 mil m² que recebeu investimentos de R$ 85 milhões do setor privado, além de estímulos públicos, foi reformado e é atualmente dividido em salas locadas para empresas que levam para lá suas divisões de inovação e tecnologia.
Com cerca de 500 eventos por ano, o local gera uma circulação diária de aproximadamente 1.600 pessoas, em média, conta o presidente Pedro Valério. Ele conta que tem dedicado parte do seu tempo a projetos de melhoria de iluminação pública e atração de novos negócios para o entorno. “Percebemos que nos tornamos uma força motriz para o 4º Distrito. Talvez não se possa ter exatamente outros projetos como o Instituto Caldeira, mas há espaço para outros em áreas como habitação e gastronomia.”
Os planos de uma guinada liberal no urbanismo porto-alegrense enfrentam resistência. Há desconfiança de que, a exemplo do que também ocorre em São Paulo, regras mais permissivas possam levar o mercado a se concentrar em disputar as áreas já valorizada da cidade.
Copresidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil no estado, Clarice Oliveira diz que o município deveria concentrar recursos na produção estatal de habitação. Essa é, na avaliação da arquiteta, a melhor estratégia para que a cidade enfrente a perda populacional. “O que precisamos é de moradia acessível para famílias de classe média baixa que foram morar na fora da cidade, na região metropolitana”, diz.