SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O filósofo Vladimir Safatle, 52, inicia o seu novo livro, “A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome”, com uma anedota: em 2017, a classe média progressista brasileira mobilizou-se para acompanhar a final do Big Brother Brasil, da TV Globo, na mesma semana em que o governo Michel Temer aprovou, no Congresso, sua reforma trabalhista. Conhecido por sua postura à esquerda, Safatle entendeu o episódio como um sintoma da inação dos setores progressistas diante de retrocessos para a classe trabalhadora.
Professor da USP, o autor tem dito que é preciso reconhecer a morte da esquerda. Por isso, sua obra tem o objetivo de resgatar dois conceitos basilares da ideologia marxista, a saber, igualdade radical e soberania popular, para ressuscitar a luta política. No momento, diz Safatle, o cenário político não oferece uma perspectiva de transformação socioeconômica no país.
A constituição de uma frente ampla ao redor de Lula (PT), em 2022, impediu o resgate de uma agenda para reverter os direitos que foram perdidos. Nas palavras do autor, o petista, em seu terceiro mandato, traiu as aspirações mais importantes da classe trabalhadora.
“Toda política de frente ampla tem ação imediata, não de longa duração. Quais foram as pautas que o governo Lula 3 trouxe para um aprofundamento da igualdade no trabalho? Eu diria nenhuma”, diz Safatle. “Qual foi a última vez que você ouviu falar em autogestão da classe trabalhadora? É preciso criar uma sociedade em que as pessoas sejam liberadas do trabalho. Em uma sociedade rica, é possível trabalhar menos.”
Em paralelo, o escritor viu o bolsonarismo tornar-se o principal movimento político do país, com maioria no Legislativo. O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no STF (Supremo Tribunal Federal) representará, segundo Safatle, um ponto de inflexão na conjuntura antes da corrida eleitoral.
“Seria a primeira vez na história do Brasil que alguém seria condenado por tentativa de golpe de Estado. Isso é um marco para a história, não só para a esquerda”, afirma. “A condenação de Bolsonaro abre um espaço maior dentro do sistema eleitoral, mas é necessário que o campo progressista entenda que a população espera dele um programa a ser defendido, não o discurso de frente ampla.”
“A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome” é a reedição de um livro homônimo, publicado pelo filósofo em 2012. A obra se prestava a examinar o que, afinal, era ser de esquerda, pontuando desafios para os movimentos sociais. A discussão, porém, seria logo consumida pelas turbulências políticas da década, com as Jornadas de Junho de 2013, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e a ascensão do bolsonarismo.
Em última instância, Safatle reconheceu que sua análise não envelheceu bem. Decidiu, então, reescrever a história, mudando quase tudo, para corresponder aos novos tempos. O filósofo dedicou dois capítulos de seu livro aos conceitos de igualdade radical e soberania popular, articulando, assim, o grau zero do marxismo.
Para a implementação de suas ideias, o autor prevê algumas urgências, entre elas enfrentar o discurso do empreendedorismo. Em outra frente, Safatle examinou as contradições do identitarismo e, de início, problematizou o termo, mostrando que a luta de classes tem um risco identitário: um morador da área menos degradada da periferia pode não ser visto como da mesma classe de alguém que mora na favela.
Os atuais movimentos, ele afirma, são demandas universalistas, de quem nunca se integrou à sociedade. Ao mesmo tempo, reconhece que a criação de comitês de diversidade é tarefa cômoda para as empresas.
“Faz parte do sistema capitalista vampirizar as lutas sociais, e a gente vê ativistas que transmitem a imagem de uma integração possível ao mundo do consumo. Cabe à esquerda insistir que essas lutas mostram a fragilidade desse sistema, porque, na primeira crise, os comitês são desmontados.”
Em uma outra frente, o filósofo expõe as relações históricas entre soberania nacional e teologia. Segundo o autor, é importante não perder de vista a matriz teológica, que confere coesão popular e renascimento subjetivo, isto é, um certo entusiasmo, às massas.
Vinculado à teoria crítica, Safatle não se furta a dialogar com a filosofia contemporânea francesa e com a antropologia, para atualizar noções basilares do marxismo. Não por acaso, seu pensamento quer ir além da política mais imediata. Ao criticar o BBB no início do livro, Safatle, que também estuda filosofia da música e psicanálise, redimensiona a estética como o centro do problema político.
“Existe um colapso da crítica cultural, ou seja, a ideia de que nós não devemos nutrir uma visão laudatória sobre aquilo que é popular, mas tensionar o campo popular, perguntando quem produz o popular”, diz.
“Está claro que a música sertaneja é um setor avançado de reconstituição ideológica, dentro de um horizonte conservador. Isso não tem nada a ver com elitismo. O que Ana Castela ou Gusttavo Lima têm de popular? Como esse popular, que hoje aparece para nós como popular, é tão facilmente adaptável à lógica de monetização extrema do capital? Como ele circula sem fricções em campos fetichizados da indústria cultural?”.
Tal crise ocorre em um momento de perda de força crítica da música popular. Há quem diga que arte é um assunto do século 20. Safatle, porém, discorda. “Arte é um assunto do século 22. A arte é uma forma de tematizar um tempo insubmisso ao presente. Imaginar que ela morre significa imaginar uma sociedade em que a recusa do processo de alienação dos humanos não tem mais lugar.”
A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome
Preço: R$ 51,90 (111 págs.)
Autoria: Vladimir Safatle