SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Me fale da sua mãe? Qual é o preço do litro de leite? Aliás, existe leite neste universo ficcional? A propósito, sabia que você não é uma pessoa real?

O coitado que teria de responder tudo isso é um NPC, como são chamados os personagens não jogáveis de um game. Hoje, essas figuras já começam a ser criadas com inteligência artificial generativa.

Até pouco tempo atrás, a interação com eles era limitada. “Eu era um aventureiro como você. Aí levei uma flechada no joelho.” Era a frase repetida pelos sentinelas não jogáveis de todos os cantos do mundo aberto do game “Skyrim”.

Eram tantos os joelhos e tantas as flechas que a frase viralizou na internet e acabou virando um dos maiores memes da década passada. Virou camiseta, tatuagem e foi lembrada em programa de TV.

Se o avanço da inteligência artificial sobre os mercados de trabalho tem assustado muitos, há quem veja, pelo menos nesse caso, uma oportunidade para artistas.

Em março do ano passado, a Ubisoft apresentou o que chama de NEO NPCs, personagens que evocam a experiência de uma conversa real. A primeira fase do trabalho de criação de um NEO NPC é bem próxima do que faz qualquer escritor –primeiro constrói o pano de fundo da personagem, as experiências que moldaram sua personalidade, seus desejos, medos, sonhos, traumas, talentos e limitações. Em seguida, essas informações são usadas para alimentar um modelo de linguagem, e a máquina transforma aquela personalidade ficcional em algoritmo.

O resultado é uma odalisca androide que pretende reagir de forma mais complexa aos estímulos, fragmentos eletrônicos que façam com que o jogador se sinta numa conversa real.

“Isso demandará muito mais trabalho de escrita. É muito interessante, num momento em que os artistas de games estão preocupados em não serem mais necessários, ver a possibilidade da demanda por escrita se tornar enorme”, diz Julian Togelius, especialista em games e professor da Universidade de Nova York.

“Se você está escrevendo um NPC convencional em um jogo, talvez você escreva umas seis falas de diálogo. E é isso”, afirma Togelius. Agora, se o paradigma do NEO NPC vingar, o escritor precisa escrever tudo, descrever como é o mundo inteiro, “porque você pode perguntar qualquer coisa a esse NPC”, ele acrescenta.

Inteligência artificial não é exatamente uma novidade na indústria dos jogos eletrônicos. Ainda em 1984, “Ms. Pac-Man” já continha uma IA não determinista no movimento dos fantasminhas, os NPCs da era dos dinossauros.

Por isso, é de se imaginar que a indústria mundial de games chegaria ao presente pronta para absorver a IA generativa sem grandes traumas, certo? E que as perspectivas de oportunidades estariam fazendo brilhar os olhos dos trabalhadores, certo? Errado.

“Do ponto de vista tecnológico, a indústria de jogos é péssima em lidar com IA”, afirma Togelius.

“Eu diria que, agora, grande parte da indústria de jogos está numa guerra civil meio velada por causa da IA”, afirma o professor.

Essa tecnologia em jogos é tradicionalmente muito diferente da IA generativa, a chamada GenAI, que também é novidade nos games.

Artistas, escritores e programadores, em contato com ferramentas como Midjourney ou o ChatGPT, têm o receio de serem substituídos, diz Julian Togelius. “São muitos desenvolvedores de jogos que odeiam a IA generativa.”

Segundo uma reportagem da revista Wired, feita a partir de emails vazados e entrevistas, empresas de games já estão usando a ferramenta para substituir empregos.

De acordo com a pesquisa Estado da Indústria de Jogos de 2025, só 13% dos desenvolvedores ouvidos acreditam que a inteligência artificial generativa tem um impacto positivo na indústria de jogos -no ano anterior eram 21%. Para 30% dos entrevistados, ela teve um impacto negativo, o que representa um aumento de 12 pontos percentuais em relação ao ano passado. O relatório ouviu profissionais de 86 países. A maioria, cerca de 56%, vem dos Estados Unidos.

O setor não vive o melhor de seus momentos -11% dos entrevistados relataram ter sido demitidos nos últimos 12 meses.

Para além do justificável medo dos trabalhadores, há ainda uma questão conceitual que freia a inteligência artificial generativa nos games hoje. Os paradigmas de design que moldam como as estruturas dos jogos vêm sendo criadas não comportam esse novo tipo de IA.

Para entender, voltemos aos NPCs, os personagens não jogáveis. Pense num jogo de tiro hipotético, realista, que se passa na Segunda Guerra Mundial. Num game tradicional, o NPC teria um roteiro predefinido que contribui para a experiência que os criadores querem passar ao jogador.

Agora ponha a inteligência artificial generativa nesse NPC. O jogador pode dizer tudo ao personagem. O problema, sob o ponto de vista de design, é que aquilo vira um outro jogo, uma outra narrativa, seja uma linda história de amor ou uma uma realidade distópica alternativa. Ou até quebrar a quarta parede e transformar a encenação da invasão da Normandia num grande teatro do absurdo.

O olhar dos autores, portanto, acaba por se perder. Isso não quer dizer que essa lógica seja necessariamente ruim, mas é preciso pensar uma forma de executar tudo isso de modo adequado.

Claro, já há muito tempo existem os famosos MODs, alterações de fãs que mudam o jogo original, podendo criar um “Grand Theft Auto”, o “GTA”, no Rio de Janeiro, ou incluir os personagens de “Dragonball” nos cenários pré-medievais de “Skyrim”, por exemplo.

“No começo é engraçado, mas aí você começa a jogar e é péssimo”,

diz Togelius. “Deixa o jogo muito pior porque, de repente, você se perde, os personagens fazem coisas estranhas e não há controle sobre nada. A experiência do jogo se quebra de várias maneiras.”

“Os games são muito afinados para oferecer uma experiência específica ao jogador. É uma experiência muito pensada e planejada”, afirma o professor.

Isso, claro, no paradigma atual. Inúmeras possibilidades criativas podem vir com o advento da GenAI, possibilitando o surgimento de novos paradigmas que sejam capazes de absorver essa nova tecnologia em suas essências, como parte da experiência de jogo.

“De certa forma, é uma era de ouro para ser um desenvolvedor de jogos independente que sabe pensar novas ideias”, diz Togelius. “Acho que há muito espaço para criar designs em torno disso. Desenvolver novos tipos de jogos que aproveitem essas novas capacidades de IA e façam bom uso delas, mas é necessário um design novo para isso, e não é fácil.”

No Brasil, o mercado é diminuto. O cenário nacional é dominado por pequenas empresas. A Abragames, Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos, estimou que havia, há cerca de três anos, 13.225 pessoas trabalhando nas desenvolvedoras brasileiras, somando empregos formais e informais.

Muitos profissionais brasileiros costumam prestar serviço para grandes estúdios estrangeiros. É o caso de Gabriel Fontes, designer de personagens 3D, que já trabalhou para jogos como “Fortnite” e “Diablo Immortal”. Ele diz não ter visto oscilações na demanda por seus serviços desde que a IA generativa explodiu. Seu caso ilustra como a nova tecnologia ainda encontra entraves no mercado.

“Por ora é completamente proibido que nós, artistas, usemos IA para produção, por questões de vazamentos”, diz. Ao usar uma ferramenta de inteligência artificial externa, o colaborador poderia acabar fornecendo dados para o banco de dados dessa IA e contribuir para que informações confidenciais vazassem antes da hora, murchando todo o plano de marketing desses lançamentos.

“Obviamente, criar uma ferramenta própria onde você possa treinar seu próprio modelo de IA é o ideal. E, claro, a opção mais cara”, diz Thiago de Freitas, fundador da Kokku, que presta serviços para grandes estúdios estrangeiros. “Na minha visão, a baixa adoção de IA generativa no mercado brasileiro está menos ligada ao custo e mais ao receio legítimo de que a propriedade intelectual seja desrespeitada.”

Segundo ele, a demanda de trabalho não diminuiu na Kokku. “Porém, já estamos com equipe de pesquisa e desenvolvimento para nos adaptar e não virarmos uma empresa obsoleta. Já utilizamos IA em alguns projetos”, diz.

“Há uma onda de demissões grande no setor de jogos lá fora. Essa onda não chegou ao Brasil, porque o setor tem crescido no país, conseguindo novos editais e mais reconhecimento de investidores privados”, diz Márcio Filho, presidente da ACJogos-RJ, a Associação de Criadores de Jogos do Estado do Rio de Janeiro.

É uma incógnita se a inteligência artificial generativa ainda vai ceifar empregos na indústria de games brasileira. A questão é saber se o mercado estará preparado. “É como num bom jogo de futebol”, afirma Filho. “Depende de como a gente vai se comportar em campo.”