BELÉM, PA (FOLHAPRESS) – A PF (Polícia Federal) afirma, em documentos elaborados por um núcleo contra lavagem de dinheiro, que uma empresa contratada pelo Governo do Pará para obras referentes à COP30 (conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas) foi usada para a compra de armamento pesado, como um fuzil. A polícia investiga a atuação de uma suposta organização criminosa que seria especializada em lavar recursos com saques em espécie.

De 2020 a 2024, a J A Construcons recebeu R$ 633 milhões do governo de Helder Barbalho (MDB), a partir de contratos assinados com a gestão estadual, como descreve um relatório da PF. Um desses contratos, no valor de R$ 123,4 milhões, foi assinado em setembro de 2023, para execução de obras de infraestrutura em canais de bairros de Belém, no contexto da COP30.

A PF investiga um esquema de saques de dinheiro em espécie –R$ 48,8 milhões em um ano– a partir das contas de empreiteira com contratos com o Governo do Pará. O suposto esquema de lavagem de dinheiro recorreu a transações com lotéricas e postos de gasolina e transferências de quantias em sacos de lixo, carros blindados e possivelmente em aviões, segundo a polícia.

Em nota, o Governo do Pará afirmou que todas as contratações estaduais seguem “rigorosamente” os processos licitatórios e observam princípios constitucionais como legalidade e impessoalidade.

“A concorrência [referente ao contrato da COP30] foi vencida por um consórcio, que inclui uma empresa com atuação nacional”, disse. “Os serviços estão em andamento, com 90% de conclusão, representando melhorias concretas para a população.” Pagamentos foram feitos com base em procedimentos formais e em boletins de medição, cita a nota.

A análise das movimentações financeiras da empreiteira mostra que recursos foram destinados à “possível aquisição” de helicópteros –R$ 10,7 milhões– e de embarcações, como se depreende da remessa de R$ 9 milhões para uma empresa que fabrica iates.

O dinheiro financiou ainda servidores públicos, campanhas eleitorais e políticos locais, segundo documento da PF, que diz que “a aparente organização criminosa utiliza um sofisticado mecanismo de lavagem de dinheiro”.

O líder do suposto esquema, conforme a PF, é o deputado federal Antonio Leocádio dos Santos, o Antônio Doido (MDB-PA), que arregimentou um grupo armado, formado por PMs do Pará, para atuar nos saques, em vigilância e em campanhas eleitorais em 2024, afirmam documentos elaborados pela polícia. A PM diz não reconhecer a existência do grupo armado.

A mulher de Doido, Andrea Costa Dantas, é quem assina o contrato para as obras de infraestrutura nos canais de Benguí e de Marambaia e de adequação da rua das Rosas, dentro do escopo de obras de saneamento e macrodrenagem voltadas à COP30, que será realizada em Belém em novembro.

Andrea é a sócia formal da J A Construcons. Até 2017, ela era empregada de uma empresa de mineração e transporte e recebia salário de R$ 2.500, conforme a PF.

Doido e Andrea não responderam aos questionamentos da reportagem, nem o advogado indicado para dar as respostas.

O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) financia as obras nos canais de Benguí e de Marambaia e na rua das Rosas, no valor de R$ 107 milhões. Ao todo, o banco liberou créditos superiores a R$ 1 bilhão para empreendimentos de saneamento, macrodrenagem e urbanização em Belém no contexto da realização da COP30.

“O BNDES tem compromisso com a realização da COP30. E o apoio ocorre por meio de contratos de financiamento com o estado do Pará”, disse o banco, em nota. “Essas obras são licitadas e executadas exclusivamente pelo governo estadual, sem participação do BNDES.” Em caso de irregularidades, o banco aplica sanções previstas em contrato, afirmou.

O caso de Antônio Doido passou a ser investigado em um inquérito aberto no STF (Supremo Tribunal Federal), em razão do foro privilegiado do parlamentar.

A investigação da PF teve início com a prisão em flagrante do coronel da PM do Pará Francisco de Assis Galhardo, apontado como coordenador do grupo armado de Doido e como responsável pela gestão de empresas contratadas pelo governo paraense, como a empreiteira que atua em obras da COP30.

A reportagem não localizou Galhardo ou sua defesa.

O coronel e mais duas pessoas foram presos em flagrante em 4 de outubro de 2024, em Castanhal (PA), cidade a 70 km de Belém, após saque de R$ 5 milhões em espécie. O dinheiro foi sacado da conta da J A Construcons e se destinava a financiamento ilegal de campanha eleitoral, segundo a PF.

De 14 de março de 2023 a 4 de outubro de 2024, Galhardo fez 15 saques da J A Construcons, que totalizam R$ 48,8 milhões. A maior parte, R$ 40 milhões, ocorreu em 2024.

A investigação da PF aponta o uso de armamento pesado pelo grupo –que chegou a reunir 20 PMs, segundo a PF– e de equipamentos de inteligência e contrainteligência nas “missões” feitas, que incluem atividades de campanha eleitoral em cidades onde a prefeitura era almejada por aliados políticos.

A polícia analisou mensagens de WhatsApp trocadas entre Galhardo e um homem de um clube de tiro em Castanhal. No momento da conversa, segundo análise feita das mensagens, Doido já era proprietário de um fuzil e duas pistolas. Um fuzil foi vendido, com transferência para o parlamentar, mediante repasse bancário de R$ 15,8 mil originados da conta da J A Construcons, descreve a PF.

“O financiamento do poder bélico de Antônio é subsidiado com recursos da J A Construcons, empresa titular de diversas comunicações atípicas pelo Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras], devido a movimentações financeiras atípicas”, cita um documento do laboratório de tecnologia contra lavagem de dinheiro da PF.

Também são utilizados pelo grupo bloqueadores e embaralhadores de vozes em reuniões, segundo a PF.

Em uma troca de mensagens entre Galhardo e outro coronel da PM, os policiais falam sobre o uso de bloqueadores na cúpula do governo paraense, “empregados com o Gov e a Vice”. “Tudo bem, vou repassar ao deputado”, responde Galhardo.

“Há elementos que levam a crer na utilização recorrente de aparelhos de contrainteligência por parte da alta cúpula do Governo do Pará”, afirma a PF num relatório.

Aeronaves do grupo investigado se movimentaram em dias de saques milionários, segundo a polícia. “Considerando a contemporaneidade dos fatos, não se pode descartar a possibilidade de que o dinheiro seria transportado por alguma dessas aeronaves, haja vista que o modal rodoviário pode trazer risco para as ‘missões’”, cita a PF.

O governador Helder Barbalho fez uso de uma dessas aeronaves da empresa, em nome de Andrea Dantas. Isso se deu em setembro de 2024, para uma campanha política no interior do estado. Na ocasião, o Governo do Pará admitiu que Antônio Doido emprestou o avião para integrantes do MDB participarem de campanha eleitoral.