SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na cultura de alguns povos da África Ocidental, Sankofa é um pássaro que voa para frente enquanto olha para trás. A exemplo desse ideograma, as artistas que compõem a exposição “O Poder de Minhas Mãos” miram o passado para vislumbrar o futuro.
Em cartaz no Sesc Pompeia, na capital paulista, a mostra faz parte da temporada da França no Brasil, iniciativa que leva atividades culturais a 15 cidades brasileiras até dezembro deste ano.
Com obras de artistas brasileiras, francesas e do continente africano, a exposição reflete sobre conceitos como memória e ancestralidade.
É isso o que fez, por exemplo, a dupla cearense Terroristas del Amor, formada pelas artistas Dhiovana Barroso e Marissa Noana.
Sobre painéis de tecido, elas pintaram duas idosas descalças. Sob seus pés, desprendem-se raízes de capim-santo, formando uma grande rede de cipós.
“É uma obra sobre a importância das avós e das figuras femininas. São elas que mantêm as famílias. Ainda assim, têm pouca visibilidade, principalmente as avós negras”, diz Aline Albuquerque, que assina a curadoria da exposição ao lado de Odile Burluraux e Suzana Sousa.
Para Albuquerque, as artistas olham para o passado como se praticassem um exercício terapêutico. “Algumas delas procuram a sua ancestralidade para compreender a si mesmas e promover um processo de cura”, diz a curadora. “Para alguns grupos, olhar para o passado é importante para que eles possam ter um futuro.”
Isso é uma realidade para os descendentes da diáspora africana o deslocamento muitas vezes forçado de pessoas daquele continente para outras regiões do mundo. Exemplo disso é o tráfico negreiro, processo em que 12 milhões de pessoas foram confinadas em navios e transportadas em direção às Américas.
As marcas da escravidão podem ser sentidas em “Kalunga-Pequena”, obra em que Dhiovana Barroso esculpiu dois pés sobre um tapete de búzios. Até a assinatura da Lei Áurea, andar descalço pelas ruas era sinal de que a pessoa estava sob o jugo da escravidão. Além disso, em algumas regiões da África, conchas eram usadas como moeda para a venda e compra de escravizados.
“Essa é uma obra que mostra que os nossos passos vêm de longe, porque fala sobre travessia e sobre a mercantilização dos corpos”, diz Albuquerque. “Vale notar também que é um trabalho feito de cerâmica crua. Se for jogado no mar, ele se desfaz.”
De certa forma, é uma metáfora para o modo como a travessia marítima diluía aspectos importantes da identidade dos escravizados e de seus descendentes, como laços afetivos e culturais.
Ana Pi tenta reconstruir esses vínculos no vídeo “NoirBLUE Les Déplacements dune Danse”. No começo do trabalho, a artista diz ser a primeira vez em que pega um avião onde toda a tripulação é negra, desde o piloto até os passageiros da primeira classe. “Isso me faz entender imediatamente que essa não é uma viagem qualquer. Eu estou indo para a África subsaariana.”
Ao chegar ao controle migratório, um funcionário pergunta de onde ela é, ao que a artista responde ser brasileira. “Você sabe que você é daqui”, o homem diz. “Meu olho enche de lágrimas e, ao mesmo tempo, eu sorrio. E ele diz: Seja bem-vinda de volta.”
A partir daí, vemos Pi dançando com um véu azul pelas ruas de cidades africanas, fazendo da coreografia uma forma de criar conexão com esses territórios. “É como se ela fosse em busca de um passado e se descobrisse nessa viagem”, diz Albuquerque.
Em sua prática artística, Pi costuma usar danças afro-diaspóricas para questionar sistemas de opressão e refletir sobre memória e deslocamento. É isso o que ela faz, por exemplo, na performance “Atomic Joy”, em cartaz entre sábado (23) e domingo (24), na Pinacoteca de São Paulo.
Na mostra do Sesc, a artista convida o público a usar o corpo de forma inventiva. Para assistir ao vídeo, por exemplo, é preciso se deitar sobre uma esteira e olhar para um monitor instalado no teto da sala expositiva.
“A gente fica muito mais entregue à obra do que se estivesse de pé. É uma imersão total. Além disso, ao acionar outras partes do nosso corpo, ela tira a centralidade da visão.”
A corporalidade está presente também em um vídeo da sul-africana Buhlebezwe Siwani. Assim como Pi, a artista tematiza o deslocamento. Só que dessa vez a ênfase não é sobre quem chega, mas sim sobre quem vai embora. Na gravação, vemos um grupo de pessoas na beira de um rio praticando aquilo que parece ser um ritual de despedida.
“A artista fala nesta obra sobre os povos que partiram no mar para o novo mundo”, diz Suzana Sousa, uma das curadoras da mostra. “Ela faz isso a partir da perspectiva do continente africano. Enquanto países como o Brasil ganharam saberes com esse trânsito de pessoas, a África só perdeu.”
Além da questão colonial, a exposição reflete sobre o lugar da mulher na sociedade, algo que pode ser visto em uma fotografia da ugandesa Stacey Gillian Abe.
No chão, há dezenas de esculturas que reproduzem o formato de uma vulva. No meio da cena, a artista joga numa privada as vaginas de cerâmica, como se tentasse se livrar de um objeto indesejado.
“Na cultura dela, é proibido falar sobre sexo e representar as partes íntimas”, diz Sousa. “Essa fotografia nos obriga a olhar para esse assunto.”
Outra artista que reflete sobre a questão de gênero é Reinata Sadimba, moçambicana que tem três esculturas de cerâmica na exposição. São obras que retratam seres híbridos, como se fossem o encontro entre o masculino e o feminino, entre o humano e o arquitetônico.
“Na cultura da Reinata, as mulheres não fazem esse tipo de trabalho com o barro. Então, ela decide contrariar isso e produzir obras usando o material”, diz a curadora. “Ela recria a si mesma. É um gesto que muitas mulheres fazem aqui.”
A artista Senzeni Marasela, por sua vez, questiona o lugar de subserviência que frequentemente é reservado à mulher na sociedade. Na mostra, ela expôs cinco uniformes usados por sua mãe quando trabalhava como babá.
“A ideia não é que esses objetos sejam bonitos. Essas roupas, na verdade, são marcas de um passado de mercantilização dos corpos. A mulher por trás desse uniforme não era vista por ela própria, mas sim por meio do que o vestido representava naquela sociedade.”
Para Odile Burluraux, que também assina a curadoria da exposição, obras como essa são importantes para jogar luz sobre os desafios impostos às mulheres. “Acredito que a arte pode contribuir com esse processo. É uma forma de romper a invisibilidade e de quebrar um silêncio que é muito pesado.”
O PODER DE MINHAS MÃOS
– Quando Ter. a sex., das 10h às 21h. Sáb. e dom., das 10h às 18h.
– Onde Sesc Pompeia Rua Clélia, 93 Pompeia
– Preço Gratuita
– Classificação Livre