SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma nova empreitada científica e tecnológica vai literalmente usar os neurônios para tentar resolver um dos maiores riscos da exploração de petróleo: vazamentos. A aposta combina biossensores e organoides cerebrais, também conhecidos como minicérebros, para dar respostas mais rápidas a manchas de óleo antes que elas se espalhem.
A parceria une o laboratório do neurocientista Alysson Muotri (Universidade da Califórnia em San Diego), o Cenpes, o Centro de Pesquisas da Petrobras, e cientistas da UFAM (Universidade Federal do Amazonas). O plano é usar os minicérebros para processar sinais diversos (de indicadores laboratoriais e de imagens de satélite, por exemplo), integrar essa informação e encurtar o tempo para tomadas de decisão.
“É um projeto de alto risco tecnológico, alto risco comercial, mas de potencial disruptivo. A gente entende como é importante a atuação de maneira segura e que mitigue os impactos sociais e ambientais, e também tem essa vertente de fortalecimento do desenvolvimento de competências técnico-científicas no Brasil”, afirma Igor Viegas, gerente do projeto na Petrobras.
Hoje, qualquer embarcação que avista óleo precisa recolher amostras e notificar autoridades, ele explica. As amostras seguem ao laboratório para caracterização, processo que consome horas ou dias. A ideia agora é fazer a classificação no próprio local, permitindo resposta quase imediata. Em vez de esperar o laudo final, técnicos poderiam saber no ato se é petróleo cru, diesel ou outro produto e, sendo petróleo, avançar para inferir a origem geológica da mancha.
Para ganhar essa agilidade, essa linha de pesquisa envolve, além dos organoides, outras duas frentes. Uma delas é miniaturizar a análise físico-química (da composição das manchas e suas características). Outra é o desenvolvimento de microrganismos que funcionem como bioindicadores, por exemplo gerando alterações de coloração quando em contato com hidrocarbonetos, moléculas que compõem esses materiais.
A tecnologia, embarcada em um robô aquático, que também está sendo desenvolvido e que poderá atuar em mangues, poderá ajudar na segurança da exploração de petróleo na chamada Margem Equatorial, região geológica e marítima localizada entre o Amapá e o Rio Grande do Norte e próxima à foz do rio Amazonas, alvo de disputas dentro do próprio governo, entre alas desenvolvimentistas e ambientalistas.
O organoide é uma forma de ter um salto quase quântico na capacidade de computação
neurocientista
O investimento é estimado entre R$ 12 milhões e R$ 16 milhões ao longo de 36 meses. A companhia classifica a aposta como de baixa maturidade tecnológica, mas com potencial de escalar para exploração, refino e monitoramento ambiental. Em pesquisa e desenvolvimento, a empresa projeta ampliar a fatia dedicada a novas energias e descarbonização para 30% até 2029, diz Viegas.
E por que usar neurônios para integrar e processar essas informações? Segundo Alysson Muotri, há ao menos dois bons motivos: custo energético baixo e capacidade de generalização alta calcanhares de Aquiles das inteligências artificiais de hoje. “O organoide é uma forma de ter um salto quase quântico na capacidade de computação”, diz o pesquisador. E o limite dessa capacidade? “A gente ainda vai aprender isso.”
Organoides cerebrais são estruturas cultivadas em laboratório a partir de células humanas. Mesmo com baixa complexidade, conseguem reproduzir aspectos da estrutura e do funcionamento do cérebro. Por isso, são usados para estudar o desenvolvimento do sistema nervoso e têm potencial para apoiar diagnósticos e o desenvolvimento de tratamentos para doenças que afetam o sistema nervoso central.
Por ora, o objetivo é comparar retrospectivamente acidentes reais, inclusive os que derrotaram algoritmos clássicos, e ver como o organoide se comporta. Se a resposta for melhor e mais barata em energia, talvez surja um novo tipo de computador úmido e biológico para ajudar a manter a costa limpa.
Os avanços do time de Muotri na expansão das capacidades dos minicérebros nos últimos anos são notáveis. Conseguiram, por exemplo, fazer o organoide “enxergar” e reagir: um robô com sensores detecta obstáculos e, via uma camada de grafeno que se ativa com luz, estimula o tecido neural. O organoide responde com padrões que podem ser associados a comandos virar à direita, à esquerda, parar. É como treinar por meio de reforço positivo. O minicérebro aprende a pilotar o robô, mesmo que não tenha consciência disso. “Ele só está respondendo a um estímulo”, diz o cientista.
E os organoides apresentaram rearranjos funcionais da mesma forma que acontece nos nossos organismos, com as chamadas LTP e LTD (potenciação de longa duração e depressão de longa duração, na tradução dos termos em inglês). Os minicérebros guardam e recuperam traços de memória relacionados ao estímulo recebido, ficando cada vez melhores em executar tarefas previamente aprendidas. É como uma trilha no mato: toda vez que você passa, a trilha fica mais marcada (fortalece as sinapses em questão) e as conexões inutilizadas são podadas com o tempo.
Já há também um avanço de pesquisa importante na construção dos minicérebros, a vascularização. Sendo adequadamente nutridos, os organoides podem crescer em tamanho e complexidade. Depois de tentativas frustradas de misturar células endoteliais na cultura dos organoides e de criar vasos “pré-fabricados”, o que deu certo foi fundir um miniorganoide vascular a um organoide cerebral. O tecido ainda não é perfundido (não corre “sangue” de um lado ao outro), mas há uma rede de vasos abrindo caminho para organoides maiores e mais robustos, os “midcérebros”.
Os avanços das pesquisas de Muotri desembocam no melhor entendimento de condições como autismo, síndrome de Rett (que afeta o desenvolvimento neurológico em meninas), síndrome de Angelman (ligada a problemas de movimento e crises epilépticas) e até na evolução.
Uma empreitada recente, cujos resultados ainda não foram publicados, por exemplo, avalia como os neurônios dos Homo sapiens ligados à fala seriam mais resistentes à intoxicação por chumbo do que os de neandertais, o que poderia explicar a diferença nas habilidades de comunicação entre as espécies.
O cientista está no Brasil nesta semana para participar de um evento voltado para médicos, o Afya Summit, neste sábado (23), no qual explorará as possibilidades de aplicar a tecnologia dos minicérebros para os avanços no entendimento e no tratamento de doenças, além de seus aspectos éticos: e se (ou quando) os organoides tiverem algum nível de consciência?
Essa questão mobiliza neurocientistas, bioeticistas e filósofos. O consenso atual é que organoides não têm consciência, mas podem mostrar sinais de atividade neural complexa. “Se as ondas neurais desaparecerem com anestesia, é um sinal de que pode haver consciência. Não é uma prova, mas uma evidência”, explica Muotri. Em termos de complexidade, ele estima que esses modelos fiquem “entre uma abelha e um camundongo”.
Se algum nível de consciência for confirmado, a orientação seria aplicar regras semelhantes às do uso de animais em experimentos científicos: justificar o número de “sujeitos” e usar anestesia ao final dos protocolos, por exemplo.