SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) – Aos 32 anos, Jaqueline Lima pisou pela primeira vez em um tatame de jiu-jítsu. Tímida e “delicada”, como ela se descreve, achava que não tinha perfil para aquele universo de força e técnica. Três meses depois, já estava competindo. Duas décadas mais tarde, tornou-se bicampeã mundial. Faixa preta, hoje ela comanda uma academia com o marido, na zona leste de São Paulo.

A trajetória foi marcada por obstáculos: o preconceito contra mulheres no esporte, o desafio de treinar e competir sem patrocínio, e a decisão de transformar o desemprego do marido em oportunidade para viver do jiu-jítsu.

“Minha medalha de campeã mundial chegou com 50 anos. E chegou porque eu não desisti”, afirma.

Hoje, aos 53 anos, Jaqueline treina com atletas que têm menos da metade da sua idade, viaja pelo mundo para competir e mantém na própria academia um espaço de acolhimento e disciplina.

‘ACHAVA QUE NÃO PODIA’

O gosto pelas lutas nasceu cedo, assistindo a filmes de faroeste e artes marciais com o pai. Mas, na infância e adolescência, não havia dinheiro e nem estrutura para treinar.

“Nós éramos quatro irmãos, meu pai trabalhava num posto de gasolina, minha mãe não trabalhava. Não tinha condição”, conta Jaqueline.

O primeiro contato com o jiu-jítsu veio já adulta, na academia em que treinava com o marido. Durante meses, o mestre insistiu para que ela experimentasse a modalidade. “Fui dar uma olhadinha tímida. Eu era mocinha, achava que não podia. Mas comecei a treinar e, três meses depois, já estava competindo na faixa branca.”

Ela, que já era mãe de dois filhos —e nesta quinta-feira (21) tem três—, se dividia entre trabalho, casa, filhos, casamento e o esporte. “Tem de gostar e querer. Eu acordava mais cedo, deixava comida pronta e levava meus filhos para a academia. Quando a gente quer, dá um jeito.”

A adaptação foi rápida. Jaqueline treinava com homens e, muitas vezes, enfrentava resistência por ser mulher e boa competidora.

“Alguns ficavam com raiva quando eu ganhava. Não me davam a faixa porque eu batia nas meninas que eles queriam impressionar”, diz.

O preconceito atrasou sua graduação: demorou mais de dez anos para se tornar faixa preta, quando o usual é oito anos ou menos.

Mesmo assim, ela seguiu competindo. Venceu campeonatos brasileiros, sul-americanos, pan-americanos e mundiais, muitas vezes contra adversárias muito mais jovens. nesta quinta-feira (21), treina com meninas de 13 a 30 anos, que a veem como rival e referência. “Eu gosto que me tratem como adversária, não como ‘tia’. É isso o que me mantém evoluindo.”

‘NAQUELA LUTA, ESTAVA PRONTA PARA GANHAR’

A primeira vitória mundial de Jaqueline veio tardiamente —e justamente por isso teve um sabor especial. Ela já havia disputado o campeonato antes, chegando a um segundo lugar, mas a tão sonhada medalha de ouro só chegou em 2022, quando tinha 50 anos.

O torneio aconteceu em Las Vegas, um dos palcos mais prestigiados do jiu-jítsu. Sem patrocínio, ela e o marido bancaram todas as despesas para competir. No dia da final, Jaqueline entrou no tatame determinada a não deixar a luta nas mãos dos juízes.

Gosto de finalizar, para não ter dúvidas. Naquela luta, eu estava pronta para ganhar.Jaqueline Lima

A vitória coroou anos de treinos intensos, viagens custeadas do próprio bolso e enfrentamento de adversárias bem mais jovens. Naquele ano, ela e o marido conquistaram títulos mundiais no mesmo dia —um feito raro na história do esporte. “É uma sensação única estar no tatame com quem você ama e dividir a conquista.”

Apesar da importância, a conquista passou quase despercebida pela mídia e até pela cobertura do evento. Nenhum fotógrafo registrou o momento da premiação. Foi o marido quem tirou a foto que hoje simboliza aquele dia.

Para Jaqueline, o título foi a prova de que a idade e o gênero não limitam o potencial de quem treina com disciplina. “Se eu tivesse esperado ‘ficar boa’ para competir, talvez nunca tivesse subido naquele pódio. A gente só sabe se é capaz quando tenta.”

‘ALUNOS TAMBÉM PODEM VIVER DISSO’

A ideia de abrir uma academia nasceu de uma crise. Quando o marido, Márcio, perdeu o emprego, o casal não quis voltar ao trabalho formal. Venderam o carro, compraram tatames e, com ajuda de amigos, montaram a primeira academia num bairro próximo. “Não tínhamos nada. Foi tudo com a força de vontade e o apoio de quem acreditou na gente.”

No início, os dois passavam o dia na academia, dividindo funções: ele ministrava aulas e Jaqueline treinava com os alunos, ajudando a atrair mais mulheres para o espaço. A presença feminina foi estratégica: “Quando as meninas veem que não tem mulher, não querem treinar. Eu estava lá para mostrar que o jiu-jítsu é para todas”.

O crescimento foi gradual. Com o tempo, mudaram para um bairro mais movimentado e estruturado, o que aumentou a clientela. nesta quinta-feira (21), o espaço é uma franquia da equipe de competição deles e sustenta o casal. “Vivemos de jiu-jítsu e mostramos aos alunos que eles também podem viver do esporte.”

A academia é mais do que um lugar de treino: recebe crianças, idosos, mães solo, pessoas com depressão e dependentes químicos. Jaqueline e Márcio adaptam treinos para cada caso, inclusive para autistas. “O jiu-jítsu é uma terapia. É disciplina, autoestima e comunidade”, resume.

‘SEM ADVERSÁRIO, NÃO HÁ LUTA’

Ao longo da carreira, Jaqueline colecionou títulos importantes: bicampeã mundial, campeã pan-americana, brasileira e sul-americana. Mas garante que os pódios não são seu único combustível.

“O mais importante é não desistir. Faixa preta nada mais é do que uma faixa branca que não desistiu.”

O tatame também foi suporte em momentos difíceis. Ela passou por cirurgias, competiu grávida e enfrentou o câncer da filha mais velha. Em todos esses períodos, o jiu-jítsu foi fonte de força e equilíbrio. “Já ouvi muita gente dizer que o esporte salvou a vida. Posso dizer que salvou a minha também.”

Na academia, incentiva as mulheres a treinarem mesmo sem apoio familiar. “Muitas acham que não podem ou que não têm tempo. Mas uma hora por dia para você mesma pode abrir caminhos que você nem imagina.”

Para Jaqueline, a essência do jiu-jítsu está na troca. Viajar para competir, conhecer outras histórias e treinar com adversárias que se tornam amigas são parte do que mantém sua motivação alta.

No tatame, a gente aprende a respeitar quem está do outro lado. Sem adversário, não tem luta.Jaqueline Lima