SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Debora Bloch mataria Odete Roitman, a personagem que ela mesma ressuscitou em “Vale Tudo”. É o que a atriz diz sobre a vilã que trouxe de volta à televisão, armada de bom humor e sensualidade, um tanto diferente da versão que Beatriz Segall fez há quase quatro décadas.
Com tiradas que viram memes a cada capítulo, Odete deixou de ser aquela que desperta ódio, e só ódio, para ficar mais saborosa. Se na “Vale Tudo” de 1988 havia expectativa pela morte da personagem, que parou o país na reta final da trama, o público de hoje liga a TV com desejo de ver e repercutir suas barbaridades.
Bloch fica ressabiada com essa admiração. “Odete representa um tipo de pensamento terrível. Não passo pano, ela tem de ser punida”, diz a atriz, por videochamada. “É divertida, mas só porque se trata de uma personagem. A ficção cria um ambiente protegido para as pessoas se identificarem com suas sombras.”
Odete é um poço de maldade, preconceituosa e elitista. Na semana passada, sorriu ao dizer que a Raquel interpretada por Taís Araujo teria de sair pela porta dos fundos por causa de sua pele preta. Antes, soltou que “pobre é uma praga” e faz cara de nojo ao falar do Brasil.
Esse sentimento contraditório, misto de amor e ódio, criou tamanha conexão entre a nova versão da vilã e o público que a fez ganhar quase tanto protagonismo quanto a mocinha de Araujo. Bloch vai aos estúdios seis dias por semana e decora o texto aos domingos -é uma das atrizes com mais cenas a gravar.
O público se delicia quando ela cospe verdades na cara de outros personagens. Odete não tem paciência, por exemplo, para o filho Afonso, papel de Humberto Carrão, que reclama dos privilégios de uma vida abastada, nem para as tentativas estapafúrdias de Maria de Fátima, vivida por Bella Campos, uma garota fútil, de virar uma influenciadora adorada.
Ela faz isso com frases de efeito, ácidas e pomposas, feitas para viralizar e aumentar a repercussão da novela, que teve uma audiência morna quando estreou, há cinco meses. Deu certo, e a novela se tornou um dos principais assuntos das redes sociais. “Nós não temos lastro, nem intimidade, para uma agressão dessa monta”, frase que ela disse a Raquel, foi uma das falas que mais repercutiu.
Bloch atribui a graça de Odete a Manuela Dias, autora do remake, mas diz que experimentou muito antes de encontrar o tom. “Fiquei noites sem dormir, não tinha certeza de como faria. Mas sabia que queria humor. Isso gera fascínio nas pessoas.”
Odete é uma personagem que encanta, em especial o público feminino, por ser uma mulher de 60 anos segura de si e dos seus desejos, retrato incomum de personagens com essa idade. É cheia de apetite sexual e faz de objeto os homens com que se relaciona, todos ao menos 20 anos mais jovens, encarnando um tipo de papel reservado a personagens masculinos. “Odete inverte os papéis. O fato de ela comprar seus parceiros é simbólico”, afirma Bloch.
Numa cena recente, por exemplo, a vilã, bebendo champanhe no gargalo, adorou ser levada para transar num ferro-velho com César, um dos seus affairs, interpretado por Cauã Reymond. O ator diz gostar de usar o personagem para subverter a imagem de galanteador que o público tem dele. Afinal, desta vez é a mulher que o conquista, não o contrário.
Mas a verve de Odete não se resume a sexo. Com atitudes lidas como ataques ao machismo, ela se impõe frente aos homens que a cercam e solta frases como “não faço nada que os homens não fizeram com as mulheres por séculos”.
“Manuela Dias coloca na boca de Odete o que muitas mulheres gostariam de dizer”, afirma Debora Bloch. Exemplo disso, para a atriz, é a cena em que a personagem afirma que nunca quis ser mãe e que talvez fosse mais compreendida se fosse um pai. Magnata bem-sucedida, Odete passou anos trabalhando longe de casa, ausente do cotidiano familiar e cuidando dos filhos só com dinheiro, não com carinho.
“Recebi mensagens de mulheres delirando com essa frase, se identificando”, diz Bloch. “As que trabalham no set, especialmente as mais maduras, adoram a Odete, se sentem vingadas. A mulher de 60 não quer ser a de 30. Ela quer ser a de 60 mesmo, e livre.”
É o tipo de reflexão que a atriz tem feito cada vez mais. Bloch completou 62 anos em maio e diz estar num dos melhores momentos da vida. A declaração combina com a de Fernanda Torres, de 59 anos, sua amiga de infância, que curiosamente recusou interpretar Odete porque estava gravando “Ainda Estou Aqui”. O filme venceu o Oscar em março e a levou ao auge, segundo ela própria.
B Bloch e Torres têm histórias interligadas. As duas se encontravam na coxia dos palcos enquanto os pais, Jonas Bloch e Fernanda Montenegro, trabalhavam. Anos depois, ambas descobriram levar jeito para a comédia, quando Bloch chamou a amiga para o espetáculo “5x Comédia”, liderado por Luiz Fernando Guimarães.
No cinema, Bloch deu vida a Bete Balanço no filme de Lael Rodrigues, de 1984, que levou à tela os anseios por liberdade de uma geração de jovens no fim da ditadura militar. Poucos anos depois, aos 25, ela via a primeira versão de “Vale Tudo” ir ao ar. “Eu era jovem nessa época. Tinha visto pais de amigos sendo presos, torturados. A gente tinha medo, não podíamos falar, as peças eram censuradas.”
Por isso, a novela de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères virou um marco da TV. Fazia um retrato ácido do país recém-saído de um regime autoritário, em processo de redemocratização, e usava Odete como representação do conservadorismo ainda latente. Com uma trama cheia de conflitos, o folhetim descortinava a desigualdade social, criticava a corrupção e ainda debochava de uma elite predadora.
Bloch diz ver poucas diferenças entre passado e presente. “Acreditávamos que tínhamos reconquistado a liberdade de vez, sem ter consciência de que ela poderia ir embora de uma hora para outra. Hoje estamos vivendo uma nova ascensão do fascismo. As ‘Odetes’ da vida real saíram dos armários, perderam o pudor, mostraram seu lado mais sórdido”, afirma.
A atriz, aliás, é explícita quando o assunto é política. Há pouco tempo, ela se posicionou a favor da taxação dos super-ricos e apoiou Lula na eleição contra Jair Bolsonaro, há três anos. No começo do mês disse, ainda, ser contra o projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental no país.
Dessa forma, Odete não poderia estar mais distante dela. Conservadora declarada, a personagem critica pautas progressistas, reclama da classe operária e menospreza a esquerda. “Manuela Dias trouxe humor para essa personagem porque é uma ferramenta inteligente para se fazer crítica”, afirma Bloch. Procurada, a autora não quis dar entrevista.
Até agora, Dias entregou uma “Vale Tudo” que fala de forma menos incisiva sobre política se comparada ao folhetim original. Por outro lado, a roteirista vem abordando com mais profundidade pautas que não tinham avançado tanto no debate público em 1988, como o racismo -agora, Taís Araujo dá vida à protagonista Raquel, antes interpretada por uma atriz branca, Regina Duarte.
“Racismo, classicismo e homofobia são pautas que a Globo traz em todas as novelas há pelo menos cinco anos. Estão em ‘Vale Tudo’, mas também às sete e às seis e nas novelas anteriores”, afirma Nilson Xavier, crítico de TV e autor do livro “Almanaque da Telenovela Brasileira”.
Ao longo desta entrevista de quase uma hora, Bloch faz questão de relembrar várias ocasiões em que discorda de Odete Roitman. Chama a vilã de narcisista, aproveitadora e recusa o rótulo de fada sensata, que ela ganhou nas redes sociais. Mas reconhece que Odete é uma das grandes. “Ela aconteceu junto da minha maturidade como atriz. Estou igual pinto no lixo.”