SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Senado vai sabatinar nesta quarta-feira (20) um ex-lobista da Vale nomeado pelo governo federal para a diretoria da ANM (Agência Nacional de Mineração), órgão responsável por fiscalizar as mineradoras do país. Se tiver seu nome aprovado, José Fernando de Mendonça Gomes terá que julgar processos da empresa onde trabalhava que somam ao menos R$ 3,8 bilhões.

Na última semana, a Folha de S.Paulo entrou contato com Gomes por várias vezes, questionando se ele, caso seja aprovado pelo Senado, aceitaria julgar os casos da Vale, por onde atuou por 15 anos. Mas ele não respondeu nenhum dos contatos —feitos via telefone, aplicativo de mensagens e caixa postal. A reportagem também entrou em contato com a esposa do indicado, mas não obteve retorno.

A dívida bilionária da Vale se refere às cobranças da ANM, feitas ainda em 2019, em relação a pagamentos de Cfem, como são chamados os royalties pagos pelas mineradoras à agência e repassados a municípios, estados e União.

Técnicos da ANM verificaram que a Vale pagou menos do que deveria em 24 ocasiões. Em um desses casos, a dívida supera R$ 1 bilhão e em outros variam de R$ 2 mil a R$ 834 milhões.

No final de março, a superintendência de arrecadação e fiscalização de receitas da ANM julgou improcedente todas as defesas administrativas da Vale e colou um prazo de dez dias para a mineradora pagar os débitos, parcelá-los ou apresentar recursos à diretoria colegiada da agência. A informação, à época, foi noticiada primeiramente pelo portal Metrópoles.

A reportagem apurou, no entanto, que nenhum desses débitos foi pago desde então, e que as cobranças agora serão discutidas pela diretoria colegiada da agência —para onde Gomes foi indicado.

Os processos ainda não foram distribuídos pela secretaria-geral da ANM, e ainda não têm previsão de serem julgados. Mas como Gomes terá um mandato de quatro anos, com possibilidade de recondução por igual período, é improvável que ele não precise analisar as cobranças enquanto estiver na agência. Há ainda a possibilidade de ele ser sorteado relator do processo.

O regimento interno da ANM prevê a possibilidade de os diretores se declarem impedidos de julgar alguns casos, ainda que a legislação não defina explicitamente que eles devem se abster de casos de empresas nas quais já trabalharam. A Vale, por exemplo, tem mais de mil processos na agência e, nos últimos dois anos, ao menos 28 processos da companhia foram analisados diretoria.

Gomes foi gerente regional de relações governamentais da Vale no Pará e Maranhão de 2006 a 2021. Neste período, ele representava a mineradora em reuniões com o governo local e eventos de entidades. Ele foi um dos organizadores, por exemplo, da primeira reunião do então presidente da Vale Fabio Schvartsman com o então governador do Pará, Simão Jatene, em 2017. Também foi responsável por fazer a interlocução entre a mineradora e o governo paraense durante todo esse período.

Quando saiu da Vale, em 2021, Gomes afirmou a um jornal local que, durante os 15 anos em que trabalhou na empresa, ele “construiu uma equipe, que viu evoluir a cada dia, fez amigos e viu a história acontecer”.

Entre 2011 e 2021, foi também presidente do Simineral, sindicato que representa 13 mineradoras que operam no Pará e que atua como interlocutor do setor mineral com os governos locais. Gomes assumiu o cargo como representante da Vale.

Procurada, a empresa disse à reportagem que não comentaria sua relação com o nomeado.

De acordo com pessoas que acompanharam Gomes enquanto ele esteve na Vale, à época ele também era próximo do governador do Pará, Helder Barbalho. Quando saiu da mineradora, ele assumiu por três anos a secretaria de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia estado. Hoje, é presidente da Companhia de Saneamento do Pará.

Waldir Salvador, consultor de relações institucionais da Associação Brasileira dos Municípios Mineradores, diz que a aprovação de Gomes pode viciar os processos em questão. “A agência foi feita para ser representada com homens públicos que tenham uma construção de carreira em órgãos públicos, justamente para serem isentos. Então, nós não vamos nos contentar a ficar assistindo, vamos acompanhar todos os despachos e se for o caso vamos denunciar no Ministério Público”, afirma.

A ANM é uma das agências reguladoras mais sucateadas. A legislação prevê que 7% da arrecadação da Cfem deve ir para o custeio da agência, mas historicamente o valor repassado não fica acima de 1,5%, como a Folha de S.Paulo apontou no ano passado. Com isso, faltam funcionários para fiscalizar a dívidas das empresas e até a estabilidade das barragens, como aquelas que romperam em Brumadinho e Mariana.

A agência também está envolvida em escândalos. O mais recente envolve uma manobra por parte da diretoria da ANM para permitir que uma mineradora de MG pagasse R$ 33 milhões a menos do que o ofertado em um leilão de reservas organizado pela agência.

FAMILIARES EM MINERADORAS

Como diretor da ANM, Gomes ainda terá que julgar casos de mineradoras nas quais seu filho e sua esposa trabalham.

Como a Folha de S.Paulo mostrou em março, Gomes é pai de Caio Brilhante Gomes, consultor jurídico da Aura Minerals, uma das maiores produtoras de ouro do país. Na empresa, Caio elabora documentos jurídicos, acompanha ações administrativas e judiciais e presta assessoria jurídica para as operações da empresa no Brasil. Ele também é responsável por entrar em contato com agências públicas –inclusive a ANM

Já sua esposa, Poliana Bentes, tem uma empresa de consultoria, por meio da qual faz relações institucionais e governamentais para empresas. Entre seus principais clientes estão a mineradora Bemisa, que tem projetos de vários minerais no Brasil, inclusive no Pará.

Em março, após notícia da Folha de S.Paulo, a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) protocolou um requerimento pedindo explicações à Casa Civil sobre a indicação de Gomes à diretoria da ANM. O documento, no entanto, não chegou a sair do Senado.