SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Entre tapas e beijos, pouco importa mais do que a família. Ao menos é o que Raphael Bob-Waksberg, criador do desenho “BoJack Horseman”, parece querer dizer. Se o cavalo antropomorfo ressentia os pais abusivos, os Schwoopers têm mais carinho uns pelos outros. Isso, é claro, enquanto a paciência durar.

O amadurecimento dessas relações não é a única lição que ele aprendeu com os dramas do equino alcoólatra. Em “Long Story Short”, que estreia na Netflix nesta sexta (22), as raízes judaicas do comediante reforçam que assuntos profundos também pertencem às animações.

A série sobrepõe linhas temporais —estrutura próxima de “This Is Us”, que vai e volta entre décadas ao acompanhar os Pearson— e adota a religião para tratar de heranças, crises de identidade e fragmentações genealógicas. Tudo isso num universo colorido e fácil de se acompanhar, mesmo na falta de animais falantes.

Bob-Waksberg, aliás, não quer que o espectador se preocupe com confusões cronológicas ou com a miscelânea de gêneros. Esse fardo já é suficiente para a sua equipe.

“Antes de ‘BoJack’, temíamos as reações aos diferentes tons. Surgiam questões: ‘Isso é emocionante? Isso é engraçado? Devo rir ou devo chorar?’. Mas depois percebi que o conjunto funcionava. Existe uma fantasia nas animações que permite intensificar certas conversas. Usamos essa mídia para que as batidas emocionais sejam ainda mais fortes”, diz ele.

No centro do seriado estão a infância, a adolescência e a vida adulta de três irmãos. No presente, Avi, o mais velho, evita o judaísmo. Ele se recupera do casamento fracassado e teme o possível bat-mitzvá da filha —cerimônia que determina, aos 12 anos, a maioridade religiosa de uma judia.

Shira, a do meio, se desdobra para ser a mãe perfeita e atender ao rigor de sua própria “iídiche mame”. E Yoshi, o caçula, é uma espécie de página em branco. Desligado, cresceu num mundo de imaginação, sempre aberto ao que vier.

“Não existe um jeito certo ou errado de ser judeu. Você deve seguir a forma que lhe for mais significativa. Não deve se prender a regras que os outros consideram corretas. É claro que isso vale para toda a humanidade. O único jeito errado de se existir é aquele que te deixa miserável”, afirma Bob-Waksberg, cuja família sempre se dedicou à comunidade em que cresceu.

Mãe e avô coordenaram uma livraria judaica por mais de duas décadas, e o pai dirigiu um centro religioso até se aposentar. Em meio aos serviços, sempre sobrou espaço para a descontração. Além dos preceitos bíblicos, a comédia permaneceu enquanto linguagem de amor.

“Mostrei apenas o piloto, e eles amaram. Acho que se sentiram aliviados por não ser uma representação exata de quem são, mas também se divertiram com os aspectos que lembram a nossa dinâmica familiar”, diz o criador. O nascimento de seus filhos também serviu de inspiração, mas ele não vê o projeto como autobiográfico.

“Mais do que os personagens em si, sinto que eles se identificaram com o modo com que eles falam uns com os outros e com suas piadas. É sincero, sem que haja a ilusão de que estou contando histórias sobre a minha família.”

Alguns causos, inclusive, são absurdos demais para a realidade. Em determinado episódio, Yoshi tenta se mostrar um profissional responsável e é seduzido por um produto curioso: colchões transportados em pequenos tubos de ar. Ele se junta a um esquema de pirâmide e a lábia o faz um vendedor de sucesso. Tudo desanda quando centenas de unidades passam a explodir pela cidade.

Em outro capítulo, Avi busca se aproxima de sua pequena. Ela fala sobre os “lobos” que a atormentam na escola. A metáfora logo se mostra uma ameaça literal, e a indiferença à alcateia que tomou o espaço durante a pandemia denuncia o negacionismo.

“Se por um lado buscamos discussões sérias, por outro queremos manter a palhaçada. Ela de situações banais, como a dificuldade em transportar grandes objetos. Ou de um vídeo sobre a introdução de lobos num novo habitat, por exemplo. ‘Como utilizar esses elementos?’. As perguntas nos ajudam a inserir muita bobeira na vida dos personagens”, explica Bob-Waksberg.

Fora as situações cômicas, o surreal também adiciona à direção de arte, assinada por Allison DuBois e Lina Hanawalt. Os traços e as cores variam conforme o emocional dos personagens. É o caso de uma visita à praia. Ainda criança, Shira é abandonada pelo primogênito. Ondas aumentam e ela imagina estar em apuros. A escuridão do mar contrasta com o sol que ilumina a areia.

Algo semelhante acontece durante o bar-mitzvá de Yoshi, quando ele questiona sua fé em Deus. A luz diminui e os parentes viram espíritos obscuros, amplificando as dúvidas em sua mente.

“Queríamos que o visual fosse pitoresco, tirado de um livro infantil. Algo feito à mão, que apenas humanos conseguiriam fazer”, afirma ele ao falar sobre o uso de inteligência artificial na criação de imagens.

À luz da guerra entre Israel e a população palestina, ele diz que o lançamento trouxe alguns receios. Nada que tenha alterado os planos.

“Não posso dizer que a série não é política de nenhuma forma. Acho impossível separar o lado pessoal do político. Mas esse programa é sobre uma família. São pessoas que estão tentando aprender a como lidar umas com as outras. Eles sentem coisas diferentes e tentam entender como podem viver juntos.”

LONG STORY SHORT

– Quando Estreia nesta sex. (22) na Netflix

– Classificação 14 anos

– Elenco Ben Feldman, Abbi Jacobson e Max Greenfield

– Produção Estados Unidos, 2025

– Criação Raphael Bob-Waksberg