SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A nova lei do licenciamento ambiental tem uma brecha que pode autorizar projetos em desacordo com as regras específicas das cidades, segundo especialistas.
O artigo 17 da legislação apresentada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) mantém a redação aprovada no Congresso e estabelece que a licença para um empreendimento não depende da emissão da certidão de uso, parcelamento e ocupação do solo urbano entregue pelos municípios. Assim, uma indústria pode, por exemplo, obter a instalação em uma área apenas residencial.
O texto também retira a exigência de outras autorizações concedidas por órgãos que não façam parte do Sisnama (Sistema Nacional de Meio Ambiente). Isso inclui, por exemplo, permissões para uso de recursos hídricos, as chamadas outorgas de água. Atualmente, esses documentos devem ser anexados ao licenciamento.
“Dentro do licenciamento feito pelo Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais] ou pelo órgão ambiental estadual, esses documentos não vão precisar mais existir e isso pode gerar a instalação de empreendimentos em locais que contrariam o planejamento e a legislação municipal”, afirma Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente (de 2016 a 2018).
Araújo pondera que a mudança na lei não isenta a necessidade de o empreendedor emitir as certidões, mas sim de apresentá-las durante o processo. Ela avalia que o artigo, dessa forma, compromete a análise dos riscos ambientais por parte dos entes estaduais ou federais.
“Imagine um licenciamento que seja feito pelo Ibama, que não entende nada da legislação de cada um dos 5.570 municípios. Ele vai ter que correr atrás para ver se está tudo bem”, diz.
O MMA (Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima) afirma que a nova lei mantém a necessidade de cumprimento das normas municipais.
“Os municípios seguirão sendo parte dos processos nos ritos estaduais e federais, uma vez que recebem os estudos e podem, se desejarem, apresentar parecer técnico e participar das audiências públicas”, diz, em nota.
A arquiteta Ana Paula Koury, membro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, diz que a lei ameaça legitimar empreendimentos irregulares e provocar conflitos jurídicos. “Sem mudar o artigo 17, a nova lei pode comprometer a integração entre cidade, meio ambiente e gestão das águas”, analisa.
A Anamma (Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente) avalia que haverá o risco de conflitos territoriais e degradação generalizada.
Andréa Struchel, diretora jurídica da associação, diz que a mudança exclui o poder municipal do licenciamento. “No frigir dos ovos, o planejamento urbano e ambiental local, que inclusive pode ser mais restritivo que o nacional, vai ser desmerecido”, afirma.
Ela cita como exemplo a delimitação de áreas de preservação permanentes (APPs) em margens de rios. O Código Florestal estabelece parâmetros mínimos para esses espaços protegidos, mas as cidades podem determinar faixas maiores em planos diretores e leis específicas.
“Se houver uma legislação municipal de maior cuidado e que proteja além do Código Florestal, essa escolha do município por uma política mais restritiva pode ser desconsiderada”, afirma.
A diretora da Anamma também critica a falta de exigência de consulta aos conselhos municipais de Meio Ambiente e diz que essa obrigação deveria estar explícita na lei. “Houve esse divórcio da autonomia municipal, seja do ponto de vista técnico, seja do ponto de vista da participação das pessoas que moram na cidade”, diz.
Araújo, do Observatório do Clima, cita o caso das usinas termelétricas, que consomem grande volume de água: “Pode acontecer de o Ibama ou órgão ambiental estadual fazerem todo o licenciamento e só no final o órgão de recursos hídricos identificar que não tem outorga de água. É uma burrice esse dispositivo, só gera confusão. O que custa pegar esse papel e incluir no processo de licenciamento?”.
A advogada Ana Claudia La Plata, especialista em direito ambiental, diz que a lei delega ao empreendedor a possibilidade de apresentar os documentos necessários. “É um ponto de preocupação, porque dispensa a melhor interpretação da legislação local”, analisa.