SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A visita que a atriz francesa Sarah Bernhardt fez à capital paulista em 1886 é o tema da primeira peça da “Trilogia Paulista”, projeto criado pelo dramaturgo Samir Yazbek a partir do desejo de olhar para a sua própria aldeia, São Paulo, a cidade onde nasceu e vive até hoje.

As três peças vão compor um painel da história da cidade, entre 1886 e 2025, a partir de temas como a desigualdade social e racial, a subserviência ao estrangeiro e a modernização por meio da arte e da cultura.

“São Paulo é uma paixão na minha vida. O centro foi um dos primeiros lugares que frequentei. Lembro de pegar o ônibus no Ipiranga, onde morava, e ir para a praça da Sé para ficar rodando”, ele diz sobre as caminhadas da adolescência.

É como se Yazbek tivesse uma dívida com a própria cidade, após espetáculos que proporcionaram encontros com outros lugares, como o premiado “O Fingidor”, ficção de 1999 em que o poeta português Fernando Pessoa conquista a vaga de datilógrafo de um crítico literário; e “O Outro Borges”, de 2023, com dramaturgia desenvolvida a partir da obra do argentino Jorge Luís Borges.

A primeira peça da trilogia, “Sarah em São Paulo”, no gênero épico, tem estreia prevista para janeiro do ano que vem, no mês do aniversário da cidade. A direção é de Ulysses Cruz e a produção, de Fernando Padilha.

Foi Cruz que contou ao dramaturgo o episódio em que estudantes da Faculdade de Direito, deslumbrados pela atriz, substituíram os cavalos de uma carruagem e levaram Bernhardt ao hotel onde ela estava hospedada, após apresentação na capital. O fascínio os levava também a jogar os casacos no chão para a diva passar.

A história, descrita no livro “A Capital da Solidão”, de Roberto Pompeu de Toledo, levou Yazbek a imaginar a conversa entre a francesa e os estudantes em uma cidade que vivia o movimento abolicionista e ainda era uma província de cerca de 50 mil habitantes.

“Eu já estava lendo sobre os abolicionistas paulistas, sobre o Luiz Gama”, diz. A imagem da atriz carregada desencadeou o processo de criação da trilogia, com temas que orbitam os pensamentos do dramaturgo.

O material de pesquisa é formado por livros como “Teatro e Escravidão no Brasil”, de João Roberto Faria, “Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo”, de Elciene Azevedo, e “Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro”, organizado por Ligia Fonseca Ferreira.

A segunda peça da trilogia, “A Grande Obra”, será montada no gênero dramático e vai mostrar a valorização da arte estrangeira na década de 1950 em São Paulo.

O contraste entre as montagens de clássicos estrangeiros no TBC, o Teatro Brasileiro de Comédia, e as questões raciais e sociais abordadas pelo TEN, o Teatro Experimental do Negro, será abordado pelo enredo, que está na fase final de escrita.

No gênero lírico, a terceira peça, “Pais e Filhos”, será uma encenação nos dias de hoje e vai mostrar que os problemas sociais e raciais, além do atrelamento às influências estrangeiras, ainda fazem parte da realidade brasileira. No enredo, pai e filho, artistas de teatro, vivem conflitos ideológicos.

O espetáculo tocará na percepção que o dramaturgo tem sobre a atualidade como um momento de extremo individualismo e de dificuldades para o diálogo.

Yazbek cita o contexto de avanços tecnológicos que convivem com retrocessos políticos, capazes de criar pesadelos alimentados pelas redes sociais. “O teatro é uma arte relacional, seja em que gênero for. E acho que estamos com essa dificuldade”, afirma.

Em 2006, ele encenou o díptico “Brasil, o futuro que nunca chega”, a partir de um mergulho na história do país, com foco no Rio de Janeiro pré-abolição da escravidão.

“Eram dois textos que, para a minha exigência de hoje, considero inacabados”, relata, em uma sincera autocrítica. “Corri muito naquela época para fazer. E, de alguma maneira, estou voltando para esse universo com mais tempo, mais tranquilidade e com esse olhar para a cultura do teatro na cidade de São Paulo e também a relação com o estrangeiro”.

Mestre em letras pela USP, Yazbek estreou profissionalmente em 1988 e consolidou sua formação com o diretor Antunes Filho, no CPT, o Centro de Pesquisa Teatral do Sesc.

Dramaturgo, pesquisador e professor, já teve 16 peças encenadas e publicou três volumes, de 12 previstos, da “Coleção Dramaturgia – Samir Yazbek”, pela editora É Realizações.

Além da trilogia, para os próximos anos planeja parcerias com os artistas Clayton Nascimento, Ricardo Bittencourt e Yara de Novaes, para três projetos teatrais diferentes.

Além disso, em outubro deve estrear no Teatro Itália uma nova montagem de seu primeiro texto, “Uma Família à Procura de um Ator”, de 1988, com atuação de Anderson Muller e direção de Gustavo Merighi.

“Os encontros com atores e diretores enriquecem a minha visão de dramaturgo. É algo que me alimenta muito”, diz sobre as parcerias. No caso de “Trilogia Paulista”, a sinergia é também com a metrópole.

“Eu gostava de andar na rua Direita, na praça da Sé. Andar e olhar. Era bem menos perigoso”, recorda sobre a adolescência caminhante. A deterioração da região central de São Paulo deixa o dramaturgo inquieto e indignado.

“Como é que os governantes permitiram que tanta gente fosse parar nas ruas? Como é que isso não é olhado com decência, com atenção?”, questiona, emocionado ao lembrar do que sentia na juventude, quando percorria sozinho os meandros do centro.

Visitas a uma fotótica para revelar fotos destinadas ao jornal caseiro que produzia e paradas em livrarias faziam parte do percurso na época.

No Café Girondino, onde falou a este jornal, Yazbek conta que a atual pesquisa que realiza é movida também pelo desejo de voltar ao passado e tentar entender como São Paulo se transformou em uma cidade com tantas vidas maltratadas.

A demolição do Teatro Ventoforte, que ficava no Parque do Povo, e as ameaças ao Teatro de Contêiner, localizado na Luz, fazem parte dos questionamentos que ocupam os pensamentos do dramaturgo, defensor de mais investimentos na educação e na cultura.

A trilogia, com a São Paulo de ontem e de hoje, é vista por ele como o ponto alto da longa e bem-sucedida carreira no teatro.

“Estou colocando tudo o que sei, tudo o que aprendi, tudo que acredito”, explica. Isso inclui a intimidade com a linguagem teatral, a consolidação de parcerias nos palcos e o enraizamento maior na própria realidade. “É a minha história, a minha vida”, diz sobre as reflexões sobre a cidade que embruteceu, mas segue atraente.