SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Pouco mais de meia década atrás, o quadril do anestesista Robert Ribeiro Neto, já dava sinais de que algo não estava bem. Às vezes, acordava com rigidez ou com um incômodo na região sacral, o finzinho da coluna. Se passasse muito tempo dirigindo, sentia incômodo ao sair do carro. Mas bastava um comprimido de dipirona para seguir o dia.

“Eu achava que era um mal jeito, uma tendinite, alguma coisa muscular. Nunca pensei em algo grave, muito menos algo que pudesse me incapacitar. Então fui levando, tomava um remédio, e melhorava.”

Em agosto de 2023, no meio de um treino de agachamento mais pesado, sentiu que o quadril direito “falhou”. A dor não veio na hora, mas a sensação era de uma desconfortável instabilidade. No meio da noite seguinte, acordou com uma sensação de queimação. E, ao longo dos meses seguintes, a dor voltava sempre que fazia esforço: subir escadas, treinar pernas, enfrentar plantões longos. Em outubro, já mancava. Mesmo assim, seguiu trabalhando.

No fim de novembro, antes de embarcar para uma viagem ao deserto do Atacama, no Chile, fez infiltrações no quadril para aliviar o desconforto. Encarou trilhas e até a subida de um vulcão. Ao final daquele dia estava acamado no hotel, com dor lancinante e sem conseguir encostar o pé no chão. De volta para o Brasil, foi direto para os exames.

“Quando eu abri o resultado e vi escrito ‘osteonecrose da cabeça do fêmur’, eu me assustei. Sou médico e entendo o que significa. É uma doença que não tem volta, e o estágio já era avançado, com fratura. Foi um abalo emocional muito grande, porque eu estudei e entendi que provavelmente a única solução seria colocar uma prótese. Já estava pensando em quando teria que trocar essa prótese no futuro.”

Além de anestesista, Robert é baterista, e a dor no quadril acabou silenciando também essa parte da vida dele. Ele já não conseguia tocar o bumbo sem sentir pontadas. Cancelou apresentações, encostou a bateria e passou meses sem sequer sentar no banquinho. “Tocar sempre foi minha válvula de escape”, conta. E ele teve que passar meses afastado da atividade.

A cirurgia aconteceu em março de 2024, e foi tudo bem. Claro, ao procedimento se sucedem séries e séries de fisioterapia (“e ainda deveria ter feito mais”, diz Robert), até largar as muletas depois de seis semanas.

O lado esquerdo, aparentemente saudável, descobriu-se depois, também esconde o mesmo problema: necrose importante, mas, felizmente, sem fratura. “Foi outro balde de água fria. A gente decidiu esperar e não fazer uma cirurgia agora, mas eu sei que, em algum momento, ele também vai precisar de prótese. Quero adiar o máximo possível, porque quanto mais cedo colocar, mais cedo pode precisar trocar.”

Hoje, as próteses de quadril podem durar décadas: cerca de 80% ainda funcionam bem após 25 a 30 anos. Mesmo assim, em pacientes jovens, há o risco de precisar trocá-las mais de uma vez ao longo da vida, especialmente em caso de desgaste, quedas ou infecção.

A osteonecrose é a morte do tecido ósseo causada pela falta de irrigação sanguínea. Pode ocorrer após traumas, como fraturas ou luxações, mas também por causas não traumáticas, como uso prolongado de corticoides, consumo excessivo de álcool, tabagismo, alterações de colesterol e triglicérides, HIV e até doença de descompressão em mergulhadores.

Um estudo publicado no periódico Journal of Arthroplasty, que investigou prontuários de 1.127.796 pacientes submetidos à artroplastia total de quadril entre 2016 e 2021, mostrou que a incidência de osteonecrose aumentou de 1,4% no período pré-pandemia para 1,6% durante a pandemia.

Entre os pacientes operados entre abril de 2020 e dezembro de 2021, aqueles com histórico de Covid-19 apresentaram uma taxa de osteonecrose de 3,9%, comparada a 3,0% entre os que não tiveram a doença, indicando uma possível associação com a infecção pelo Sars-CoV-2.

“No pós-Covid, vimos um aumento de casos no consultório. Isso pode ter relação com o uso de corticoides no tratamento da doença, mas o próprio vírus provoca um estado de hipercoagulabilidade, que pode prejudicar a circulação da cabeça do fêmur. Não é algo imediato —esses quadros podem aparecer meses depois”, afirma Bruno Rudelli, ortopedista do Hospital Sírio-Libanês que assistiu Robert.

“O problema é que a dor inicial da osteonecrose é inespecífica. Pode ser na virilha, lateral ou atrás do quadril, e muita gente acha que é muscular. O paciente vai empurrando, e quando descobre, já está em estágio avançado”, explica Rudelli.

Quando a necrose é diagnosticada cedo e sem colapso ósseo, ainda há opções para tentar preservar a articulação original. “Isso inclui adaptação das atividades, uso de muletas para tirar carga e, em alguns casos, cirurgias como a descompressão óssea, que perfura a área necrosada para aliviar a pressão e estimular nova vascularização. Há controvérsia sobre se isso muda a evolução, mas pode ajudar na dor”, diz o médico.

No decênio entre 2012 e 2021, o SUS (Sistema Único de Saúde) realizou mais de 125 mil artroplastias de quadril (comumente na faixa dos 60 anos, sendo mais frequente em mulheres). Embora a osteoartrite seja de longe a principal indicação, outras causas também impulsionam a cirurgia. A osteonecrose da cabeça do fêmur responde por uma fração relevante dos casos (cerca de 6%, nos EUA), seguida por fraturas (especialmente em idosos), artrites inflamatórias como a reumatoide, displasia do desenvolvimento do quadril e sequelas de doenças ortopédicas da infância, artrose pós-traumática e cânceres.

“Foi frustrante pensar: o que eu fiz para causar isso? Será que foi algo que eu poderia ter evitado? E descobrir que, na maioria das vezes, é idiopático, ou seja, sem causa definida”, conta Robert. “É difícil lidar com a sensação de que você não tem controle. Hoje eu valorizo cada movimento sem dor. Valorizo poder levantar da cama e andar sem mancar. O silêncio do corpo nem sempre é paz — às vezes, é o aviso de que algo sério está acontecendo. Aprendi isso da pior maneira”, diz o médico-baterista.

Prevenir a osteonecrose não é sempre possível, mas reduzir riscos é: evitar corticoides sem prescrição médica e o abuso de álcool, não fumar, controlar colesterol e triglicérides e procurar um especialista ao sentir dor persistente na virilha, quadril ou lombar. O diagnóstico precoce pode adiar — e até evitar — a cirurgia.