SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – O escritor napolitano Antonio Scurati, autor de uma monumental biografia romanceada de Benito Mussolini que levou cinco volumes, tende a economizar no uso da palavra “fascismo” para falar de hoje.
Segundo ele, não é possível classificar a extrema direita global como fascista no sentido que o ditador italiano deu à palavra o que não significa que não haja muitas semelhanças entre os movimentos.
“Trump, apesar de tudo, conquistou o poder por duas vezes por meio de eleições livres. Mas isso não deve nos impedir de perceber que o populismo soberanista dele e de outros líderes americanos e europeus herdou muitas características das ditaduras fascistas do século passado e representa uma ameaça nova e explícita à democracia liberal”, argumenta ele.
Como costuma acontecer com os monstros, a série de livros de Scurati, designada com a letra “M”, saiu um pouco do controle. No Brasil, chegou há pouco às livrarias o terceiro volume, com o título “M: Os Últimos Dias da Europa”, enquanto o quinto e último tomo acaba de sair na Itália.
A terceira parte da série narra a aproximação cada vez maior entre Mussolini e seu antigo admirador, Adolf Hitler, o fracasso das negociações de paz europeias diante da voracidade territorial do nazismo e o início do conflito global.
A grande ironia dos anos narrados no volume é que, apesar do suposto apreço dos fascistas pela virilidade e pelas virtudes marciais, o regime italiano faz de tudo para atrasar sua participação no ataque às potências democráticas (França e Reino Unido) junto com Hitler.
O ditador e seu genro e ministro das Relações Exteriores, Galeazzo Ciano, não acreditam que a Itália esteja pronta para um novo conflito de grandes dimensões e regateiam com os alemães, pedindo remessas gigantescas de matéria-prima bélica que sabidamente Hitler não teria como enviar.
A decisão de entrar na guerra vem só por meio de um cálculo de oportunismo, no qual Mussolini chega à conclusão de que acabará sendo tratado como vassalo caso os nazistas triunfem sem ele, como parecia que estava prestes a acontecer em 1940.
Scurati transforma todos esses momentos em romance histórico, ainda que a narrativa esteja amplamente apoiada na documentação original da época é comum que trechos de cartas ou notícias de jornal das décadas entre 1919 e 1945 sejam reproduzidos palavra por palavra nos volumes de “M”.
O autor diz que é dificílimo escolher como e quando usar essa fartura de material, mas que a “nota de corte” principal para a seleção acaba sendo mesmo a narrativa.
“O critério último, creio eu, é o rigor intelectual, mas, sobretudo, o da lógica literária. Se aquelas escolhas geraram uma síntese narrativa feliz dos acontecimentos históricos, um bom romance, capaz de inspirar o leitor, é porque foram as escolhas corretas.”
Ele compara o que tentou fazer nos livros com narrativas feitas a partir da tradição oral. “É a história transmitida de boca em boca por quem a viveu. Talvez seja o único tipo de história que realmente importa.”
Além de retratar os figurões do regime, com destaque para Mussolini, que vive um lento declínio de seu vigor em cenas patéticas com a amante Clara Petacci, o volume mostra ainda a amargura de judeus italianos que tinham apoiado a ascensão do fascismo.
Ao contrário do que ocorreu na Alemanha, o antissemitismo não era parte programática do movimento de Mussolini no início. Mas, ao assumir um papel cada vez mais subalterno em relação ao poderio alemão, a Itália acaba impondo leis segregacionistas contra os judeus, tirando-lhes a maior parte de seus direitos de cidadania.
Sob o peso da perseguição aparecem dois desses antigos judeus fascistas, que estão entre as figuras mais complexas da série: Margherita Sarfatti, ex-amante de Mussolini, e Renzo Ravenna, ex-prefeito da cidade de Ferrara. Ambos tiveram de fugir do país para sobreviver ao Holocausto.
O fascismo italiano precisou de quase duas décadas para aderir ao antissemitismo e à guerra engendrados pelos nazistas. Mas era inevitável que o regime mergulhasse na carnificina, diz Scurati.
“Esse apocalipse final estava inscrito no destino do fascismo desde o princípio, porque a violência é a própria quintessência desse regime”, sentencia ele. “Mussolini, de início, teve muitas dúvidas a respeito de algumas decisões fatídicas. Mas a visão de conjunto revela que a perseguição aos judeus ou a outros inimigos imaginários, a aliança com Hitler e a guerra mundial eram a conclusão obrigatória da história e da ideologia fascistas.”
M: OS ÚLTIMOS DIAS DA EUROPA
– Preço R$ 89,90 (384 págs.); R$ 62,90 (ebook)
– Autoria Antonio Scurati
– Editora Intrínseca
– Tradução Marcello Lino