SÃO CARLOS, SC (FOLHAPRESS) – Os misteriosos quipos um sistema de cordinhas com nós criado pelos povos dos Andes, que pode ter funcionado como mistura de contabilidade com escrita não seriam dominados apenas pela elite pré-colombiana. Uma nova pesquisa sugere que plebeus do Império Inca também tinham acesso à tecnologia.
A conclusão, que está em artigo publicado na última quarta-feira (13) no periódico especializado Science Advances, baseia-se num detalhe inusitado: o emprego dos cabelos do próprio usuário dos quipos para fabricar os componentes do artefato.
Por mais estranho que pareça, essa prática era relativamente comum, conforme explica a equipe de pesquisadores liderada por Sabine Hyland, da Universidade de St. Andrews (Reino Unido). Em muitas culturas dos antigos Andes, os cabelos funcionavam como uma espécie de representação da essência de cada pessoa. Dessa forma, incluir fios do próprio cabelo, trançados, na estrutura dos quipos equivalia a uma espécie de “impressão digital” da pessoa responsável por aquele registro.
Além de ser encontrados em sepulturas dos séculos anteriores à chegada dos espanhóis aos Andes, os quipos também são citados pelos cronistas europeus e indígenas que documentaram a história dos incas depois da invasão ibérica na região.
Nesses textos, a função mais importante dos artefatos é a administrativa. Elementos como a cor das cordinhas entremeadas nos quipos e o número de nós serviriam como um código que registrava os diferentes tipos de tributos recolhidos pelo Estado inca em cada região, por exemplo. Ainda há um debate acerca da possibilidade de que os objetos pudessem registrar informações mais “narrativas”, como pequenas histórias.
Em alguns dos textos de cronistas, a função de cuidar desse tipo de arquivo é atribuída aos chamados “khipukamayuqs”, ou criadores de quipos, homens que pertenciam à elite imperial, seja na capital, Cuzco, no atual centro-sul do Peru, seja em centros provinciais.
Os textos coloniais afirmam ainda que os “khipukamayuqs” recebiam grande abundância dos melhores alimentos produzidos pelo império e produziam os próprios quipos em que registravam os dados da administração. Ou seja, não contavam com “escribas” que fizessem o registro em nome deles, como acontecia em outras administrações imperiais do mundo antigo e medieval, mas produziam seus próprios “textos”.
Alguns dados do começo do período colonial, porém, davam a entender que a produção de quipos não era exclusividade dos homens da nobreza incaica. O cronista indígena Felipe Guaman Poma de Ayala (1534-1615), por exemplo, diz que mulheres também podiam aprender essa arte, o que foi corroborado por uma descoberta arqueológica na qual uma jovem foi enterrada com um quipo.
No novo estudo, a equipe liderada por Sabine Hyland conduziu uma análise química do quipo designado pela sigla KH0631. Originalmente, o artefato, que data mais ou menos do ano de 1500, foi levado para Munique no começo do século 20 e atualmente está na Universidade de St. Andrews, embora sua procedência exata não seja conhecida. O fio principal do quipo, a partir do qual vários outros fios com nós pendem, é formado por uma trança de cabelo humano que, antes de ser dobrada e trançada, media ao menos um metro de comprimento.
Acontece que a composição química do cabelo corresponde, é claro, à alimentação da pessoa ao longo de sua vida. Foi com base nisso, levando em conta variantes dos elementos químicos carbono, nitrogênio, oxigênio e enxofre, que os pesquisadores conseguiram inferir uma série de dados sobre a alimentação da pessoa que fabricou o quipo (usando, muito provavelmente, seu próprio cabelo para isso).
A composição química dos fios deixou claro, por exemplo, que esse indivíduo consumia pouquíssima carne e milho justamente os alimentos prediletos da elite inca. Em vez disso, ele provavelmente se alimentava de tubérculos e quinoa, um cardápio típico das classes baixas do império.
A análise indica ainda que os alimentos e a água que ele consumia vinham de localidades com altitude em torno dos 2.500 metros, em solos compatíveis com a região entre os atuais sul do Peru e norte do Chile.
Testes com outros quipos podem ajudar a mostrar se esse acesso dos plebeus à tecnologia era relativamente comum ou uma exceção, e até que ponto os artefatos podiam funcionar como um análogo da escrita em outras sociedades imperiais antigas.