RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – No texto “Flutuações na Liberdade”, Paul Valéry revela como “liberdade” é uma palavra em disputa, não só pelo seu significado, mas pelo seu valor e uso —está, afinal, nos discursos do KKK e também nos da Pantera Negra, na boca de Donald Trump e na de Mahatma Gandhi.

“Liberdade: é uma dessas palavras detestáveis que têm mais valor que significado; que cantam mais do que falam; que perguntam mais do que respondem (…) palavra muito boa para a controvérsia, a dialética, a eloquência; tão adequadas para análises ilusórias e sutilezas infinitas como para os finais de frases que desencadeiam trovões”.

“Eterno Vulnerável”, individual de Castiel Vitorino no Solar dos Abacaxis, expõe e transcende ideias de liberdade e cura, sempre cruzando experiências psicológicas, espirituais e artísticas.

“Para as populações negras em diáspora é sempre uma questão falar de liberdade. E, por ser uma mulher transexual, também me atinge esse imaginário da cura em volta da transexualidade e homosexualidade. Por isso, tento estudar e fazer as pazes com estas palavras. E dizer o que eu penso que é liberdade e cura”, explica a artista.

Mas, apesar da exposição trazer questões muito pessoais e íntimas, Castiel não chega no Solar com uma postura egocêntrica. Pelo contrário, todo o seu trabalho é sobre escuta e generosidade.

Logo na entrada da mostra, é possível ver uma instalação imersiva formada por quatro grandes estandartes —uma referência às tradições afrobrasileiras como congo, ticumbi, carnaval— tingidos e preenchidos por escritos, rezas, costuras e desenhos que mapeiam a própria história de Castiel. Sua trajetória é marcada por presenças e ausências intensas, prelúdio do que surgirá na exposição.

Os números são uma espécie de contagem criada por Castiel para representar o processo do desaparecimento de sua mãe e as mãos impressas fazem referência a uma parede criada por seu pai que reproduziu, talvez inconscientemente, um gesto ancestral e atávico de afirmação da existência.

No centro, um campo de terra adubada protege o tablado onde são apresentadas esculturas de barro que evocam ninhos, casas, casulos e cupinzeiros com cores e formas que fazem referência ao Cosmograma Bakongo —símbolo bantu que remonta ideias de vida, morte, ancestralidade e metamorfose.

A terra funciona como uma espécie de campo magnético que representa a fertilidade, a luta por território e também os ciclos da vida. “Castiel sempre nos convida a viver imersões multi-sensoriais para que, no encontro com elementos do mundo, o público consiga estar presente de maneira integral, sentindo-se parte de um todo, desta grande continuidade que não tem bordas ou limites”, explica Bernardo Mosqueira, curador da mostra ao lado de Matheus Morani.

Castiel sempre questionou estes limites e as categorias que usamos para ver e lidar com o mundo. Ela reconhece o impacto real destas classificações, na distribuição desigual de violência, recursos e afetos, mas também as compreende como ficções que aprisionam as pessoas. Então, negá-las é um processo de cura, libertação e potência. A instalação é, portanto, um território de acolhimento e transformação ou, como define a artista, um “espaço perecível de liberdade”.

Tanto a psicologia quanto a arte entra em sua vida por uma vontade grande de entender sofrimentos individuais e sociais. “Enquanto a psicologia é uma ciência que vai atuar no seu indivíduo, arte transporta tudo para o coletivo”, pontua a artista. Não à toa, ela convida o público a vivenciar seus trabalhos coletivamente e a experimentar o que nos é comum e essencial – como os elementos da natureza e a respiração —para dissolver conceitos que estruturam a colonialidade, incluindo questões sociais, raciais e identitárias, que podem ser comuns a muitos.

A série “Método Elementar” nasce de rituais de escuta e cura nos quais a artista propõe uma meditação coletiva e desenhos coreografados de linhas que devem se encontrar num ponto central comum. Algumas dessas obras foram levadas para o ateliê e Castiel fez intervenções que fazem referências a seu universo particular —flores, libélulas, laços, luas, estrelas, peixes— e celebram sua própria ancestralidade.

Enquanto se formava como artista e psicóloga, Castiel se aprofundou no uso de somagramas —técnicas terapêuticas de desenho nas quais o paciente é convidado a representar o próprio corpo e emoções. Com o tempo, ela criou uma série de aquarelas onde revê seu corpo ao contestar formas coloniais de se pensar o corpo humano.

Surgiram, assim, desenhos livres de seres marinhos que foram se complexificando com o tempo. “Na cultura afro-diaspórica o peixe é um animal sagrado. E vários mudam de sexo, sabia? Eu mesma sou meio sereia, não acha?”, brinca.

No segundo andar, os peixes aparecem em pinturas de cenas bucólicas de fazendas e rios tirados de seu imaginário de infância preenchido por desenhos da avó paterna, Julite, que também aparecem na exposição.

“Aqui ela coloca o peixe em diálogo com elementos que a avó pintava. Mais do que um encontro, existe aqui, um alinhamento. É como se Castiel se colocasse como herdeira de uma linhagem”, explica Mosqueira sobre o espaço onde o universo da artista se mistura ao de Julite.

“Olhei para os meus trabalhos antigos e percebi que a flor é um elemento que sempre esteve presente. Entendi que elas vieram das pinturas de minha avó, então resolvi assumir esse poder feminino da minha família e obra”, defende a artista. “Trago e reverencio a natureza, também, para reforçar a humanidade dentro da transexualidade. É mais importante, para mim, falar sobre cores, flores, terra, água e ar, do que só dizer ‘sou uma travesti’. É sobre a essência da vida”.

No centro do espaço, vemos outra série de esculturas cercadas por terra fértil. “Não Dá pra Não Pensar em Você” é uma estrutura piramidal que exibe 15 dormentes de madeira cobertos por mosaicos de espelhos e ladrilhos. O número escolhido é um marco simbólico dos 15 anos do desaparecimento da mãe de Castiel, Ingrid, pontuados também na primeira instalação da mostra que recebe o mesmo nome da matriarca.

“Estes pedaços de madeira maciça são usados para fazer trilho de trem e escadas. Trago esse elemento como simbologia de um caminho que preciso traçar”, explica a artista. “Não tem como falar sobre liberdade sem falar sobre a minha relação com a minha mãe. Ela desapareceu em 2009, e desde então isso se tornou uma ausência que marca tudo. É um trabalho sobre memória, saudade e cura, mas também sobre a forma como a ausência pode ser presença. Esses totens são como marcadores de tempo, de afeto e de resistência”, diz.

“Eterno Vulnerável” é uma descrição poética sobre a liberdade que é, em algum grau, permanente, mas está sempre em risco. É também uma narrativa sobre a própria Castiel, uma pessoa “eternamente vulnerável” ou alguém que é eterna e, ao mesmo tempo, vulnerável.

“Há, aqui, uma pontuação sobre temporalidade e transmutação. Não uma noção de tempo homogêneo, mensurável, irretornável. Mas o tempo espiralar onde tudo pode se sobrepor, reformar, transformar. É o presente enquanto eternidade. E a vulnerabilidade não só como fraqueza, mas como a possibilidade de entrar em contato com as próprias emoções”, pontua ela.

E Castiel se coloca, aqui, o mais vulnerável possível. Abre o peito e mostra a própria natureza de suas emoções, expõe os próprios medos e dores. Mas não somente para costurar uma cura individual, mas para elaborar algo que pode ser importante para outras pessoas.

Este intuito fica claro quando ela usa espelhos para criar os mosaicos. O reflexo coloca o público dentro da obra, entrega nossa própria imagem para nós mesmos e pergunta: Quais são os seus processos de luto? E de transformação? Quais são os pesos que você carrega e quais os fragmentos do mundo que você pode transforma em beleza e se libertar?

ETERNO VULNERÁVEL

– Quando Qua. a sáb., das 10h às 18h; até 1/11

– Onde Solar dos Abacaxis – Rua do Senado, 48, RJ

– Preço Grátis

– Autoria Castiel Vitorino Brasileiro