RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore diz acreditar que o Brasil tem um exemplo a dar no modelo de financiamento a projetos de energias renováveis, hoje um dos principais entraves para a transição energética em países em desenvolvimento.
Esse pode ser, na sua opinião, um dos principais resultados da COP30, conferência climática das Nações Unidas que será realizada em novembro em Belém, na qual ele confirma presença.
“O BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] mitigou os riscos de investimentos em energia renovável”, afirma. “Esse é o tipo de modelo que pode funcionar para outros países.”
Idealizador do filme “Uma Verdade Inconveniente” (2006), que ajudou a popularizar alertas sobre a crise climática, Gore vê avanços no crescimento das energias renováveis e acha que os recuos na luta ambientalista motivados pela eleição de, Donald Trump são temporários.
“Temos apenas mais três anos e meio deste tipo de visão pseudoautoritária de governo”, opina, em entrevista à Folha no Rio de Janeiro, onde promove curso gratuito de treinamento de lideranças climáticas. “Eu acho que a democracia dos EUA é mais resiliente do que muitas pessoas temem.”
PERGUNTA – Em suas palestras mais recentes, o senhor tem apresentado um cenário muito pior do que o de quando “Uma Verdade Inconveniente” foi lançado, quase 20 anos atrás. Ainda assim, o senhor parece um pouco mais otimista com o futuro. Por quê?
AL GORE – No ano passado, 93% de toda a nova geração de eletricidade instalada no mundo era renovável. Isso é incrível. Mais de 50% de todas as motocicletas são agora elétricas, 20% de todos os automóveis vendidos são elétricos, e, na China, mais da metade são elétricos.
Há agora desenvolvimentos em aço verde e sementes verdes, agricultura regenerativa e floresta sustentável, que põem o caminho em direção a uma solução para a crise climática.
Ainda estamos vendo as emissões aumentarem, mas estamos bem próximos de um pico, e temos visto as emissões chinesas começarem a descer, então eu vejo muitos desenvolvimentos positivos, mas eu reconheço que há muitos negativos.
Qual dessas tendências prevalecerá depende do quanto de pressão popular haverá pela mudança. E é por isso que tenho esses treinamentos de ativistas em todo o mundo.
P. – Nas palestras, o senhor destaca também alguns obstáculos como financiamento de energia limpa e o lobby da indústria do petróleo. Espera-se que sejam dois temas centrais na COP30, em Belém. O senhor tem expectativa de algum resultado concreto da conferência?
AG – Espero que sim, e eu acho que o Brasil, na verdade, pode proporcionar um modelo para lidar com esse problema de capital. O BNDES mitigou os riscos de investimentos em energia renovável e outras tecnologias de sustentabilidade.
E eu acho que esse é o tipo de modelo que pode funcionar para outros países. Então eu espero que isso seja parte dos resultados da COP30.
Sobre a libertação do controle terrível que os poluidores de combustível fóssil exerceram sobre este processo, sou otimista sobre isso também, mas é um grande desafio.
P. – Mas, ao mesmo tempo em que o Brasil quer liderar este processo, está tentando abrir uma nova fronteira de exploração do petróleo na costa amazônica. Não é contraditório?
AG – Sim, é verdade, e é verdade no meu país também. Mesmo com a transição energética, o mundo continuará a queimar combustíveis fósseis nos próximos anos e décadas. A chave é a transição para longe dos fósseis.
Claro que, como um ambientalista, estou preocupado ao ver qualquer país desenvolvendo ainda mais combustíveis fósseis. Eu gostaria que meu país não estivesse fazendo isso. Mas isso não significa que estamos destinados a falhar. Estamos vendo a energia renovável acelerar mais rápido do que a adição de fósseis.
P. – Voltando para a COP30, parece que a solução está nas mãos dos países ricos. Eles têm o dinheiro, têm mais emissões a cortar do que os em desenvolvimento. Como podemos persuadir os ricos a tomar decisões?
AG – É errado pensar que a fonte principal de fundos para essa transição vão ser os governos. Eu mencionei antes: 93% de toda a nova geração instalada foi de renováveis, e 85% do financiamento para construir toda essa energia veio de fontes privadas.
O real desafio é que países em desenvolvimentos precisam pagar muito mais juros para obter acesso às fontes privadas. Os governos não têm o dinheiro para financiar essa transição.
Na América do Norte, nos EUA e no Canadá, mais de 90% do dinheiro vem do setor privado. Mas países de renda baixa, como a Nigéria, têm que pagar mais de três vezes mais juros para obter capital privado.
O Brasil é diferente. Mesmo que as taxas de juros sejam maiores do que em países desenvolvidos, vocês têm sido capazes de mitigar os riscos de investimentos de capital privado por meio de financiamento híbrido, público e privado, com o BNDES.
P. – E é possível aplicar esse modelo em países africanos, por exemplo?
AG – Eu espero que sim. Em janeiro, o novo presidente do Banco Mundial, Ajay Banga, teve uma reunião na África para tentar introduzir essa nova abordagem.
A África tem, como continente, 60% do melhor recurso solar do mundo. Mas eles só têm menos de 2% do capital para construir energia solar, baterias e energia eólica. Então, todo a continente africano tem menos painéis solares do que o estado de Flórida, nos EUA.
P. – O presidente Donald Trump retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris. É possível vencer essa batalha sem os EUA?
AG – Eu espero que sim. E também vou expressar minha convicção de que temos apenas mais três anos e meio deste tipo de visão pseudoautoritária de governo.
Eu acho que a democracia dos Estados Unidos é mais resiliente do que muitas pessoas temem. Trump parece estar tentando destruir a integridade da democracia americana, mas não acho que ele vá conseguir fazer isso.
P. – Muitas empresas parecem estar recuando de suas estratégias de transição para não ficar mal com o governo Trump…
AG – Há um novo fenômeno chamado “green hushing”, em que as empresas continuam fazendo a coisa certa, mas elas decidem ficar quietas sobre isso, e escondem suas vozes, para que não atraiam a raiva de Donald Trump.
Trump não deveria ter tanto poder como ele tem, mas ele controla o Congresso agora. Isso não pode durar até as eleições legislativas em novembro de 2026.
P. – Então o sr. acha que, uma vez que ele saia do governo, as empresas estarão de volta?
AG – Algumas delas estarão. Você sabe, os eventos extremos relacionados ao clima estão agora capturando atenção, porque as pessoas veem o que está acontecendo.
Você olha o que aconteceu no Rio Grande do Sul no ano passado, Petrópolis no ano passado, a grande seca na amazônia, que derrubou os níveis de água… Há tantos outros exemplos em quase todos os países.
As pessoas estão prestando atenção nisso, e acho que o apoio para a ação para resolver a crise climática está crescendo como consequência.
P. – Quão longe Trump pode ir em sua guerra comercial e como isso pode afetar a relação a longo prazo entre o Brasil e os EUA?
AG – Americanos e brasileiros têm sido amigos por mais de 200 anos. Nós nunca tivemos um problema -até Donald Trump. Nós passaremos por Donald Trump.
A relação entre a população dos EUA e a população do Brasil vai permanecer forte. É triste que ele esteja dizendo ao mundo algo completamente falso, que os EUA têm um grande déficit de comércio com o Brasil. Impor 50% de tarifas para forçar uma decisão política é completamente impróprio. E, é claro, o Brasil não vai fazer o que ele quer. É ridículo.
Eu gosto muito do que o presidente Lula disse: que Donald Trump não foi eleito imperador do mundo. Então ele vai perder esse conflito. O Brasil não vai ceder, eu tenho certeza disso.
E é apenas um dos muitos exemplos de Donald Trump dizendo coisas que são provavelmente erradas. Ele diz que o vento causa câncer, que a Ucrânia começou a guerra com a Rússia, quando obviamente a Rússia invadiu a Ucrânia.
É uma característica de pessoas que gostariam de ser ditadores, vítimas da ilusão de que eles podem criar a sua própria realidade. Com algumas pessoas eles podem, por um período curto de tempo, mas não por muito tempo. E eu acho que vamos ver uma grande mudança quando tivermos eleições para o Congresso novamente. Eu prevejo que Donald Trump vai perder o controle do Congresso.
Raio-X | Al Gore, 77
Washington, 1948 Vice-presidente dos Estados Unidos de 1993 a 2001, lançou o documentário “Uma Verdade Inconveniente” em 2006. Foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz no ano seguinte. É fundador e preside o conselho da organização The Climate Reality Project.