RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Breno Batista, o Bené, tinha perto de 14 anos quando pensou em criar uma escola de samba dentro de casa. Nascido em Inhoaíba, na zona oeste do Rio de Janeiro, o garoto estava impactado com a história de Candeia, que conhecera no filme “Partido Alto”, de Leon Hirszman. Seguindo os preceitos do fundador da Granes Quilombo, uma escola de samba e de arte negra, Breno criou o Centro de Cultura Fruta do Pé, em 2017.
Nesse espaço, reconhecido como patrimônio cultural do estado do Rio de Janeiro em julho, são promovidas rodas de samba e aulas de música, dança, capoeira e encontros para a comunidade local. Assim como na escola de Candeia, Bené transformou sua casa em um quilombo.
“Quis fazer um lugar de protagonismo negro, resgatando o que está sendo perdido no samba. E que não fosse um lugar dedicado só ao Carnaval, mas também a outras expressões culturais negras”, ele afirma.
“Tem várias coisas que me fazem entender o Fruta do Pé como um quilombo. E uma delas é a questão geográfica. Tem muita gente que tem medo de vir para esse lado da cidade. Esse distanciamento faz esse espaço ser um refúgio negro”, acrescenta.
Neste sábado, no Fruta do Pé, Bené vai prestar homenagem ao mestre Candeia. Até o final do mês, outras rodas vão cantar a obra dessa figura tão importante para o samba carioca e nacional, que completaria 90 anos no dia 17 de agosto.
Candeia foi um personagem profético, que se posicionou contra os rumos excessivamente comerciais do Carnaval. Nos anos 1970, insatisfeito com a diretoria da Portela, criou a Granes Quilombo para retomar o protagonismo perdido pelos sambistas dentro das escolas e proteger tradições afro-brasileiras das influências externas -já que, na época, a música americana também embalava os bailes funk da juventude negra e suburbana do Rio.
“Como o João Nogueira, Candeia buscou fazer uma frente de resistência à invasão da música estrangeira. João Nogueira criou o Clube do Samba e Candeia criou a Quilombo”, conta o jornalista Vagner Fernandes, que prepara uma nova biografia do sambista, prevista para dezembro. “Não só por isso, mas também por sua insatisfação na Portela e diante do gigantismo dos desfiles das escolas de samba. Ele achava que descaracterizava as agremiações.”
No livro, Fernandes também buscará desconstruir a imagem truculenta de Candeia como policial civil, cargo que ocupou de 1959 a 1965, quando uma briga de trânsito terminou com tiros que o deixaram paraplégico.
“Os relatos de muitas pessoas não convergem para essa ideia que se formou do Candeia. Não creio que ele se assemelhasse ao que seria hoje um policial miliciano. Candeia era pautado pela moralidade e muitíssimo rigoroso. Absolutamente esquentado. Mas não tenho, por exemplo, qualquer informação de que Candeia tenha matado ou torturado alguém quando foi policial”, diz ele.
Para o autor, há uma tentativa de criar um perfil mítico do Candeia a partir da tragédia, já que, após o episódio, ele abraçou causas coletivas importantes. “Mas já havia nele uma sensibilidade extrema mesmo antes de ficar preso a uma cadeira de rodas. Nasce-se poeta”, afirma.
Além da figura complexa e cheia de nuances, a obra de Candeia também possui camadas que merecem atenção. Como observa Diogo Cunha, documentarista e pesquisador cuja dissertação de mestrado foi dedicada ao veterano, “eu considero que se você for interpretar o Candeia por uma biografia coerente, você vai ter essa representação do defensor aguerrido do samba brasileiro”.
“Mas as dinâmicas da música popular, principalmente da música afrodiaspórica, nunca são tão puras quanto pode parecer.”
Como se sabe, Candeia era um admirador de jazz e música erudita -influências que, embora criticadas por ele em seus discursos, aparecem de forma marcante em sua obra. É o caso, por exemplo, do disco “Seguinte… Raiz”, de 1971, em que se ouve um tipo de arranjo e a instrumentação que promovem um diálogo do samba das escolas com a música internacional, com destaque para o uso do baixo e do órgão Hammond do jazz, do R&B, do rock e até do pop da época, segundo Cunha.
Para Selma Candeia, filha do sambista, é uma emoção muito grande ver as homenagens. “Ele está recebendo o devido reconhecimento pelo que representa. Meu pai é atemporal. O que ele fez em sua casa, onde promovia rodas de jongo, partido alto, samba dolente, tudo isso está sendo valorizado hoje.”