SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Brasil tem 78 casas autorizadas a operar apostas esportivas, mas somente duas têm pagado royalties pelo uso de imagem de modalidades olímpicas, como previsto na lei. No futebol, nem isso, também por falta de ação da CBF (Confederação Brasileira de Futebol).
No oitavo mês de mercado regularizado, as operadoras de apostas seguramente já devem mais de R$ 150 milhões a confederações, clubes, ligas e atletas só as bets sabem o montante exato. O valor é relativo a um mecanismo que entrou na Lei das Bets depois de forte pressão de clubes de futebol, que exigiam uma contrapartida pela liberação de seus direitos de imagens para as apostas.
Conseguiram uma fatia de 7,3% sobre os 12% de impostos sobre o GGR (receita líquida) de cada operador. A medida provisória que deu origem à lei estipulava que os ministérios da Fazenda e do Esporte regulamentariam esses repasses, mas isso foi suprimido no Congresso.
“O texto da lei ficou omisso com relação a esses 7,3%. Fala que é para pagar, mas não fala para quem”, afirmou Giovanni Rocco, secretário de apostas do Ministério do Esporte.
Aprovada em dezembro de 2023, a Lei das Bets diz que os 7,3% são devidos “às entidades do Sistema Nacional do Esporte […] e aos atletas brasileiros ou vinculados a organizações de prática esportiva sediada no País, em contrapartida ao uso de […] suas marcas […] para divulgação e execução da loteria de apostas de quota fixa”.
Uma portaria da Fazenda publicada em janeiro determinou que a repartição dos recursos entre os envolvidos (clubes e atletas) deve ser prevista em regulamento nos torneios de organizadores brasileiros. Quando o evento for estrangeiro, os repasses serão revertidos integralmente à “organização nacional de administração da modalidade”.
Quando alguém aposta em um jogo da NBA, por exemplo, os direitos de imagem devem ser pagos à CBB (Confederação Brasileira de Basquete). Mas grandes confederações ouvidas pela Folha reservadamente temem se indispor dizem que só têm recebido de duas casas de apostas, e valores irrisórios.
Outras 31 casas se associaram ao Escritório Nacional de Rateio, liderado pelo advogado João Paulo Bachur (genro do ministro Gilmar Mendes) para fazer a intermediação desses pagamentos.
No fim de junho, quando se esgotou o prazo dado pela Fazenda para o Escritório iniciar os pagamentos, o site da entidade foi ao ar com um chamamento para que as confederações manifestassem interesse em receber os recursos devidos a elas. O documento, datado de 26 de junho, dava prazo de sete dias corridos e dizia que quem não se habilitasse ficaria impossibilitado de receber o dinheiro previsto em lei.
Mesmo a segunda maior confederação esportiva do país, a CBV, do vôlei, nunca “recebeu qualquer contato ou ofício do Escritório solicitando qualquer tipo de informação”, conforme disse à reportagem. Outras confederações também nunca foram contatadas.
Marcas como Betano, Superbet, Rei do Pitaco e Blaze estão associadas ao Escritório, que só disponibiliza contato por um email e não respondeu à reportagem. Bachur também não retornou mensagem por seu email profissional.
Enquanto isso, quatro operadoras já entraram na Justiça Federal reclamando da situação. Uma delas, a Novibet, conseguiu liminar em São Paulo para depositar os valores em juízo à União, alegando que a legislação é omissa “quanto à identificação precisa dos destinatários e aos critérios objetivos de destinação dos recursos”, uma vez que não se evidencia, “de forma clara e suficiente”, quais entidades compõem o Sistema Nacional do Esporte.
Nos esportes olímpicos e paralímpicos, as atribuições são menos turvas, mas nos esportes eletrônicos e em modalidades alternativas como corrida de cachorro o tema é nebuloso. A Kings League, por exemplo, uma espécie de mistura de futebol e “game show”, não faz parte do Sistema Nacional do Esporte as bets são obrigadas a pagar royalties, mas não há ninguém para receber.
“A gente está muito preocupado com isso, é a última coisa grande que falta resolver”, disse Rocco, que na semana retrasada mandou mais de 150 emails a confederações e federações pedindo que elas opinassem em uma consulta pública sobre como resolver o problema.
As bets também participaram. O IBJR (Instituto Brasileiro de Jogo Responsável) disse entender que o Ministério do Esporte deveria assumir a responsabilidade pela organização dos repasses.
“Para isso, sugerimos a criação de um sistema eletrônico simples e transparente, que unifique as informações, padronize os procedimentos e permita que os valores sejam pagos diretamente aos beneficiários por meio de uma conta central”, disse o órgão. Era o que o governo pretendia fazer, se o Congresso não tivesse tirado essa possibilidade da lei.
Já a ANJL (Associação Nacional de Jogos e Loterias) apontou “a boa-fé que tem sido demonstrada pelo setor como um todo em realizar os pagamentos previstos em lei”. A entidade afirmou que “o mercado regulamentado de apostas segue comprometido com todas as obrigações previstas na legislação e empenhado em, de forma conjunta, fazer os devidos ajustes para a operacionalização de todo o ecossistema de apostas”.
Em respostas à Lei de Acesso à Informação, órgãos do governo federal já indicaram que, só nos cinco primeiros meses fiscais do ano, os 12% sobre o GGR das bets representaram cerca de R$ 1,9 bilhão. Só até o final de junho, isso representava quase R$ 140 milhões em royalties.
CBF TRAVA REPASSES AO FUTEBOL
A maior parte desses valores é relacionada ao futebol. O estatuto da CBF, porém, veta o recebimento de “subvenções e doações de origem ou de natureza pública”.
Estimativas do mercado apontam que o esporte mais popular do país detenha 90% do mercado de apostas, o que significa que pelo menos R$ 130 milhões poderiam ter sido injetados no futebol brasileiro desde janeiro a partir dos impostos das casas de apostas.
Os valores exatos são um segredo guardado pelo mercado, já que as casas tratam como dados sensíveis seus faturamentos e a fatia correspondente a cada modalidade.
Cabe à CBF receber os royalties de torneios como a Premier League e metade dos direitos de imagem de eventos internacionais que contam com clubes brasileiros, como o Mundial de Clubes da Fifa. O restante vai para os times. Também é a confederação que deve incluir no regulamento de seus torneios os critérios de divisão do arrecadado com apostas.
Casas de apostas que procuraram a CBF solicitando os dados bancários da entidade ficaram sem resposta. A esquiva está relacionada ao citado artigo no estatuto da confederação. Para não ficar sujeita a auditorias da CGU (Controladoria Geral da União) e do TCU (Tribunal de Contas da União), a confederação não aceita nem os repasses que o COB (Comitê Olímpico do Brasil) faz às confederações olímpicas com verbas das Loterias.
No caso dos royalties das apostas, há divergências se esse dinheiro tem natureza pública. Da mesma forma que ele é uma parcela de uma “destinação” prevista na Lei das Bets, tal qual os repasses feitos a ministérios como o do Esporte, o do Turismo e o da Saúde logo, tem origem em uma tributação, é também uma verba privada, que sai da bet e cai diretamente na conta de um órgão privado.
Em manifestação em processo que corre na Justiça Federal em Brasília, a AGU (Advocacia-Geral da União) opinou que “o repasse não tem natureza tributária, mas configura obrigação de direito privado entre o operador de apostas e organizadores de competições esportivas”. No processo, uma casa de apostas pedia para depositar os royalties em juízo à União para não ser, depois, acusada de não pagar impostos.
Procurada pela reportagem, a CBF disse que sua nova gestão vem se dedicando ao estudo da Lei das Bets e realizou reunião técnica na última segunda-feira (11) com representantes da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda. “O encontro teve como pauta o alinhamento sobre os critérios de distribuição dos recursos e o papel das entidades esportivas nesse novo cenário regulatório”, explicou a confederação, que afirmou que “seguirá atuando de forma proativa numa resolução para o tema”.
Em São Paulo, a FPF (Federação Paulista de Futebol) adequou seu regulamento geral no fim de julho. Determinou que todos os participantes de seus torneios incluindo clubes e atletas autorizam a entidade a receber todas as receitas provenientes de apostas em caráter “irrevogável e irretratável”. Depois, caberá a ela fazer os repasses aos clubes e atletas.
Os clubes, por enquanto, evitam comentar o assunto. A Liga Futebol Forte, que representa times como Cruzeiro, Fluminense e Vasco, disse que este “é um tema de extrema relevância e que precisa ser discutido urgentemente com todas as entidades envolvidas”. A Libra, que tem Palmeiras, São Paulo e Grêmio, entre outros, não respondeu ao pedido de comentários.
A situação é diferente no vôlei e no basquete. As próximas edições da Superliga e do NBB trarão no regulamento os critérios de divisão dos royalties. No caso da CBV, as diretrizes para realização dos repasses aos clubes e aos atletas já foram elaboradas e serão discutidas com os envolvidos ainda neste mês.