SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No mês passado, uma “banda” misteriosa chamou a atenção dos fãs de música. O Velvet Sundown, que chegou a ter mais de 1 milhão de ouvintes mensais no Spotify a maioria em São Paulo, faz um rock clássico no estilo anos 1970, algo entre o Creedence Clearwater Revival e o Grateful Dead. Mas apesar de as imagens do grupo serem perceptivelmente feitas por Inteligência Artificial (IA) generativa, ninguém sabia dizer com certeza se a música também era gerada por robôs.
Enquanto perfis na internet tentavam resolver a questão, a revista americana Rolling Stone entrevistou uma pessoa que se passou por porta-voz do projeto. Ele afirmou que as faixas tinham sido feitas por humanos e máquinas, uma espécie de pegadinha. Não demorou para que a história fosse desmentida nem o homem era de fato porta-voz do Velvet Sundown nem a banda era de fato humana.
Até o fechamento desta edição, não havia informações sobre quem está por trás do projeto. Mas o perfil passou a informar que aquelas músicas foram criadas e executadas por robôs.
O uso de inteligência artificial na música não é novo, mas o Velvet Sundown é a primeira iniciativa que conseguiu causar uma dúvida desse tipo sobre sua origem. Mais que um indício da possibilidade de canções feitas por máquinas terem grandes audiências, o caso traz à tona uma problemática mais palpável, sobre a disputa entre seres humanos e robôs por remuneração no streaming.
“Temos duas coisas muito escassas tempo e dinheiro”, diz Sérgio Branco, diretor do ITS, o Instituto de Tecnologia e Sociedade, professor e advogado especialista em propriedade intelectual. “Quando a gente se propõe a ouvir música temos que escolher. Se você converge o tempo das pessoas para bandas de IA, sobra menos para os humanos.”
Branco cita um experimento feito por David Cope, morto em junho e chamado pelo New York Times de padrinho da música de IA. No teste, ele expunha a uma plateia versões diferentes de Vivaldi uma original, outra criada por um ser humano contemporâneo e outra por inteligência artificial, todas baseadas no estilo do italiano do período barroco.
Depois, perguntava qual era o Vivaldi original. “Votavam majoritariamente na IA”, diz Branco. “Quem recebe a obra, recebe como algo verdadeiro está se interessando e gostando. Há uma discussão sobre se é obra mesmo, e podemos tentar uma definição acadêmica, mas isso mostra que não é porque é feito por IA que não tem valor artístico e social.”
Um cenário em que robôs dominam a música está distante. Nesse campo artístico, geralmente se destaca quem leva uma linguagem adiante traz inovações no discurso ou forma, a uma estética. Pelo menos por enquanto, as máquinas, que criam a partir de uma base de dados de obras do passado, ainda não deram sinais de que podem imaginar o futuro dessa expressão artística.
Nas últimas semanas, viralizaram faixas de funk, pop e rap atuais recriadas com IA em estilo retrô. A gravadora Blow Records, projeto do publicitário paulista Raul Vinicius, transformou “Estilo Cachorro”, dos Racionais MCs, em um soul da década de 1970, “Bang”, de Anitta, em um R&B estilo Aretha Franklin, e “Predador de Perereca”, do MC Jhey, em um hit da disco music de 1982.
Ainda que use a tecnologia, o apelo dessas faixas tem mais a ver com a ação humana. O impacto de ouvir as letras eróticas do funk em uma sonoridade que remete a outra época, como a recriação de um passado que não existiu, não aconteceu por iniciativa dos robôs, que apenas botaram em prática a invenção.
Em situações como a da Blow Records, o teste de Vivaldi e o Velvet Sundown, as máquinas criam variações de obras que já existem. O projeto de rock se destacou em playlists do gênero a “banda” soa parecida o suficiente para se confundir em meio a outras similares, mas não é diferente o suficiente para que desponte como uma novidade relevante.
Casos como o do Velvet Sundown chamam atenção porque podem representar uma concorrência desleal por remuneração. Trata-se de um desdobramento do que mostrou a jornalista americana Liz Pelly em seu livro “Mood Machine: The Rise of Spotify and the Costs of the Perfect Playlist”, lançado neste ano, e a própria Folha, em reportagem de três anos atrás sobre a gravadora argentina Pure Music Brokers.
Livro e reportagem tratam dos “artistas fantasmas”, ou perfis no streaming que são alimentados com músicas de baixo custo versões de hits ou criações genéricas feitas sob medida para se encaixar nas playlists e multiplicar seus plays. São faixas gravadas por produtores e músicos de estúdio, que não assinam como autores ou executores das canções, e, portanto, não recebem os royalties de seus rendimentos estes, por sua vez, ficam com os administradores dos perfis.
Pelly ainda mostra que as pessoas por trás desses perfis são, com frequência, ligados ao Spotify. Com acesso a mensagens internas e entrevistas com ex-funcionários da empresa sueca, ela revela orientações para que as faixas de baixo custo sejam priorizadas e impulsionadas. Ou seja, o dinheiro que seria disputado entre artistas volta para o próprio serviço de streaming.
“Acho complicado até mesmo falar sobre o Velvet Sundown”, a jornalista diz à Folha. “Várias coisas com IA são muito mais complexas e nocivas do que uma pessoa decidindo criar uma banda e lançar umas faixas que soam como rock clássico e todo o frenesi da mídia em torno disso.”
Para Pelly, os artistas hoje têm dificuldade de encontrar uma audiência porque os meios de distribuição e descoberta de música estão profundamente impactados por mecanismos “estritamente controlados, confusos, opacos, algorítmicos e baseados em IA”. A concorrência de perfis com conteúdo feito por robôs seria só mais um problema.
Há uns anos, houve um caso parecido com o do Velvet Sundown, mas com humanos. A banda Greta Van Fleet, que chegou a tocar duas vezes no Lollapalooza Brasil, ganhou atenção porque se parecia muito com o Led Zeppelin.
“O Van Fleet obviamente ficou popular por causa dessa cultura musical algorítmica. É tipo, se você gosta disso, então vai gostar daquilo também”, diz Pelly. “Acho parecido com o Sundown. As faixas foram lançadas no Spotify e seja lá quem estiver por trás disso começou indo atrás de playlists de terceiros. A ideia, acredito, era que se as músicas aparecessem nessas playlists, acabariam sendo captadas pelas recomendações algorítmicas, pelo autoplay ou pelo modo rádio.”
A IA generativa pode facilitar o uso malicioso do sistema algorítmico de como a música circula. Pelly afirma que há dezenas de milhares de faixas feitas com a tecnologia entrando no streaming todo dia, e os artistas têm de competir por atenção e espaço com “música de IA generativa treinada a partir do trabalho deles e sem o seu consentimento”.
“Acham que os ouvintes são indiferentes a isso”, diz. “Mas não acredito que não queiram saber se a música que estão ouvindo foi feita por humanos ou IA generativa. Acho que muitos ouvintes gostariam de saber. Se essa música vai estar disponível no streaming, deveria ser identificada.”
Isso remete a outro experimento lembrado por Sérgio Branco, o professor, e citado em texto da Economist. O teste em questão expunha às pessoas poesias feitas por IA e por humanos, e depois perguntava qual elas preferiam. “Normalmente, escolhiam a de IA”, ele diz. “Mas se eu falasse, antes de você escolher, qual era de IA, as pessoas preferiam a poesia dos humanos.”
As empresas de streaming têm dado respostas diferentes à música feita com IA. O Spotify não entra no mérito de como as faixas que entram na plataforma foram feitas. Já o francês Deezer lançou uma ferramenta para eliminar as músicas de IA das recomendações e playlists editoriais.
Nesse contexto, as músicas feitas com IA generativa trazem mais uma camada de distância entre artistas e o dinheiro. Como o livro de Pelly mostra, o Spotify já institucionalizou o jabaculê o ato de pagar para que uma obra tenha maior exposição.
Trata-se de uma funcionalidade do modo Discovery as recomendações em que artistas abrem mão de parte dos royalties para ganharem maior impulsionamento. Mais da metade dos artistas que recebem royalties entre US$ 50 mil e US$ 500 mil por ano usam essa ferramenta.
Essa funcionalidade concentra mais dinheiro na plataforma, que tem as grandes gravadoras como maiores acionistas, em vez de os distribuir entre músicos e criadores. O streaming fez a música gravada voltar a ser rentável após a ascensão da pirataria e derrocada das mídias físicas nos anos 2000.
Como diz Pelly, entretanto, salvar a indústria da música não é o mesmo que salvar a música.