PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Quando as chuvas inundaram Porto Alegre no ano passado, na pior enchente da história da cidade, o Quarto Distrito foi uma das regiões mais prejudicadas. Como a área é colada ao lago Guaíba, as casas do século 20 e os galpões industriais abandonados, construções remanescentes da extinta era fabril que ali se desenvolveu, ficaram embaixo da água.

Foi um baque pelas vidas de quem mora na região, como os catadores de papel e latinha da Vila dos Papeleiros, e pelos danos ao patrimônio histórico. As cheias também destruíram pequenos negócios que vinham reanimando a área na última década, como cervejarias, restaurantes, bares e baladas, em geral voltados a um público descolado.

Agora, no momento de retomada das atividades depois das enchentes, o Quarto Distrito recebe o Museu de Arte Contemporânea do RS, o MAC, que inaugura ali a sua sede, nesta sexta-feira. Ele ocupa um antigo depósito de carcaças de carros do Detran reformado para acolher obras de arte e visitantes.

É tanto um marco para a região, necessitada de moral, quanto para o museu. O MAC existe há 32 anos mas sempre ocupou algumas salas expositivas da Casa de Cultura Mário Quintana, no centro de Porto Alegre, o que na prática significou a sua invisibilidade para muita gente, porque ele estava dentro de outra instituição cultural —embora tenha uma programação e um acervo próprios.

Para a inauguração do novo MAC nesta semana, a diretoria do museu escolheu uma obra que parece ousada, dado o momento sensível pós-catástrofe —a remontagem de uma instalação de Nuno Ramos formada por três casas em tamanho real sendo engolidas pela lama. O trabalho foi exibido pela primeira vez em 2012, na galeria Albuquerque Contemporânea, em Belo Horizonte.

Uma das casas, de mármore, afunda em lama branca; outra, de granito, em barro preto, e a terceira se esvai num líquido pastoso cor de terra. Seus telhados feitos de areia parecem se esfarelar e, embora estáticas, o visitante tem a impressão de que as moradas estão desaparecendo. É desestabilizador, assim como foi a calamidade em Porto Alegre.

“Três Casas”, conta o artista, é a representação das casas mais significativas da sua vida —uma onde passou a infância, a outra de sua avó e a terceira na qual viveu por anos em São Paulo. A instalação foi concebida depois da morte de sua mãe, junto a seu luto.

Talvez por isso Ramos diga ver na obra um certo silêncio, uma austeridade, como se ela estivesse contida em si mesma e ignorasse o público. “No luto você decide se vai ficar preso ao que você perdeu ou se vai desejar a vida de novo. É a pergunta do luto”, afirma ele, acrescentando que a instalação fala de um sentimento de recolhimento que o brasileiro, sempre efusivo, cultiva pouco.

Segundo Ramos, a montagem da peça no MAC, num contexto muito diferente do original, é uma chance de dar o pulo de uma obra calcada na autoficção para uma que dialoga com algo público. Ele se refere às enchentes na capital gaúcha, das quais foi testemunha por ir à cidade no momento em que, com o alagamento do aeroporto, ela só podia ser acessada de carro.

Para o artista, a coisa pública no Brasil só acontece na tragédia. A enchente “dá uma dimensão em que as pessoas pensam ‘nossa, eu faço parte de um todo, não sou sozinho nesse mundo, tem o meu quarteirão, a minha família”, ele diz. “Tem uma cidade, uma coisa acontecendo com o outro que me interessa.”

Um dos principais artistas contemporâneos em atividade no Brasil, Ramos tem uma longa relação com o MAC gaúcho. A instituição recebeu, em 1992, a primeira montagem da instalação “111”, sobre os presos mortos na chacina do Carandiru, além de ter obras suas no acervo. Mesmo com este histórico, ele conta ter se perguntado qual o seu lugar para abordar a catástrofe local e se poderia fazer isto.

“Por outro lado, se você não fala, fica a fala do poder, que é a que vence sempre. Vai ser sempre a fala de alguém que ocupa um cargo público importante. Parece que você tem que falar”, afirma ele, sobre a decisão de remontar a obra, tomada em conjunto com Adriana Boff, diretora do museu, e o curador André Severo. Ramos cogitou projetos inéditos tendo a enchente como tema, mas desistiu.

O novo MAC tem uma única sala expositiva e, aos fundos, um grande espaço ao ar livre com pequenos espelhos d’água, área que deve se tornar um jardim de esculturas. Ali estão também o café e dois bondinhos históricos em processo de restauro. O muro de tijolos que delimita o terreno será suporte para intervenções artísticas, de acordo com Cristina Geyer, também da diretoria do museu.

A construção da sede se materializou graças a uma ação conjunta do governo do estado —que doou o local e mais R$ 5 milhões para a reforma— e do grupo de patronos do museu, responsável pelo projeto arquitetônico, pelo restante da verba e por agilizar o processo junto aos órgãos públicos. Eles também criaram um clube de colecionadores de obras para arrecadar fundos de agora em diante.

Mesmo com o novo prédio, o acervo do MAC continuará abrigado na Casa de Cultura Mário Quintana. Afinal, não se pode deixar as suas cerca de 2.000 obras, uma coleção com pinturas, gravuras, desenhos e vídeos, expostas ao risco constante de que o lago Guaíba alague o Quarto Distrito outra vez.

TRÊS CASAS, DE NUNO RAMOS

– Quando A partir de sex. (15); até 11 de janeiro de 2026. De ter. a sex., das 12h às 18h; sáb., dom. e feriados, das 10h às 18h

– Onde Museu de Arte Contemporânea do RS – r. Comendador Azevedo, 256

– Preço Grátis

– Link: https://macrs.rs.gov.br/