SEUL, COREIA DO SUL (FOLHAPRESS) – Quem apenas conhece os produtos do soft power sul-coreano, de astros do k-pop, produções de k-drama, gastronomia, cosméticos e sucessos de filmes e seriados como “Parasita” e “Round 6”, mal imagina que em um passado pouco distante o país asiático foi um território anexado brutalmente pelo vizinho Japão.
Por 35 anos, de 1910 a 1945, não por acaso o ano do fim da Segunda Guerra Mundial, o império nipônico impôs um regime colonial à então Coreia (a separação entre Norte e Sul só ocorreria no pós-guerra), em que os cidadãos locais eram tratados como se fossem de segunda classe, e a língua local foi suprimida, num sistema que subjugava os coreanos a controles políticos, econômicos e culturais.
Nesta sexta (15), a Coreia do Sul comemora os 80 anos da libertação enquanto busca se equilibrar entre a preservação da memória dos movimentos independentistas e o cenário geopolítico atual, em que o país mantém com Japão e Estados Unidos um acordo de segurança de olho na rival Coreia do Norte e na China.
Assim, Seul procura perdoar para seguir em frente, mas sem esquecer seu passado. De um lado, encara as ameaças do Norte, o que faz o pacto estratégico com Tóquio ser algo crucial. De outro, busca proteger sua história, ainda mais quando pesquisas indicam que a população já não enxerga o Japão de maneira tão negativa.
Em 2025, segundo levantamento anual realizado pelo East Asia Institute, o nível de impressões positivas dos sul-coreanos sobre os japoneses se tornou maioria e chegou a 63,3%, a maior marca desde 2013, quando o think tank passou a realizar os estudos. Já as visões negativas bateram 30,6%, o menor patamar.
Na mesma toada, a opinião pública sobre o pacto trilateral de segurança é muito positiva, com 75,3% dos entrevistados afirmando apoiar o acordo de cooperação. Mesmo com a aprovação, o arranjo com os EUA e o Japão não está livre de dilemas, sobretudo em relação à China, maior parceiro comercial da Coreia do Sul e, ao mesmo tempo, alvo dos americanos, que procuram diminuir a influência de Pequim na Guerra Fria 2.0.
“Seul gostaria de perseguir a tática ‘China na economia, EUA na segurança’, mas o ambiente internacional, ainda mais com Trump, não permitirá isso”, afirma o historiador Kim Yong-dal, diretor do Heritage Academy of Korea. O fato de, após a vitória dos Aliados na Segunda Guerra, os EUA terem sido determinantes para o fim do domínio japonês e cruciais no apoio no conflito contra o Norte explica a influência de Washington no país.
Internamente, a melhora na percepção sobre o Japão não foi acompanhada de otimismo em relação à resolução de questões do passado. Em 2024, 42% disseram que o futuro de uma parceria que mira o futuro será difícil sem a solução de problemas históricos, alta de 12,5 pontos percentuais ante 2023. Num nível menor, a fatia de quem afirmava que contendas da era colonial seriam resolvidas gradualmente caiu de 36% para 32%.
As querelas históricas são muitas e abrangem reivindicações amplas, como um pedido formal de perdão que os coreanos considerem sincero, e outras específicas, como a origem do pagamento das indenizações para vítimas de trabalho forçado durante a anexação. O ex-presidente Yoon Suk Yeol, impichado após tentar decretar lei marcial no país, definiu que o dinheiro viria da própria Coreia, não de empresas japonesas, o que gerou forte reação e expôs seu esforço para forjar um elo mais sólido com o Japão, como os EUA desejam.
Considerado um político de forte carga ideológica, o direitista colecionou controvérsias na sua gestão e, em relação à era colonial, nomeou para dirigir o Independence Hall of Korea, um dos mais importantes museus do tema, Kim Hyung-seok, acusado por estudiosos e políticos de promover revisionismos, o que ele nega.
Com a indicação, vieram à tona falas em um evento conservador no qual Kim manifestou a intenção de restaurar a honra de coreanos que teriam sido incorretamente considerados colaboradores do Japão. O historiador disse ainda que 15 de agosto de 1945 não é o Dia da Independência, mas 15 de agosto de 1948, data da fundação da República da Coreia, o que, para críticos, seria como trocar a libertação pela fundação.
De todas as querelas do período, porém, a que mais mexe com a relação entre Seul e Tóquio é a das “mulheres de conforto”, eufemismo para coreanas forçadas à escravidão sexual pelo Exército nipônico.
A disputa em torno do caso, que até hoje provoca protestos todas as quartas-feiras em frente à embaixada japonesa em Seul, reúne decisões judiciais favoráveis a compensações às vítimas, sempre contestadas por Tóquio, e a insatisfação dos sul-coreanos frente às manifestações de arrependimento dadas pelo governo.
“A Alemanha fez diversos pedidos de desculpas a Israel e refletiu sobre o seu comportamento por um longo período”, diz Kim Jin, vice-presidente do Heritage of Korean Independence, que representa independentistas e seus descendentes. “E, acho, os israelenses aceitaram as desculpas porque acreditam que esses pedidos são genuínos. O Japão diz haver arrependimento, mas essas desculpas não tocam os nossos corações.”
Décadas atrás, Tóquio chegou a indicar uma posição na direção do desejo coreano. Em 1995, nos 50 anos da libertação, o então premiê Tomiichi Murayama deu uma declaração na qual disse que o Japão, “por meio de seu domínio colonial, causou tremendos danos e sofrimento aos povos de muitos países, sobretudo aos de nações asiáticas”. Não citou a Coreia, mas falou em “profundo remorso” e pediu “sinceras desculpas”.
Dez anos depois, o primeiro-ministro Junichiro Koizumi reafirmou as palavras do antecessor, uma linha que seria alterada em 2015, com Shinzo Abe, que levou o dominante Partido Liberal Democrático mais à direita.
Na ocasião, o que chamou a atenção foi o fato de dizer que o Japão “não pode deixar que filhos, netos e até mesmo gerações futuras, que nada têm a ver com aquela guerra, sejam predestinados a pedir desculpas”.
Agora, a imprensa japonesa especula que o atual premiê, Shigeru Ishiba, não emitirá uma declaração sobre a data. Debilitado após derrotas eleitorais, teria decidido não se manifestar para não desagradar a fatias mais conservadoras de sua sigla com interpretações sobre o papel do país na Segunda Guerra e em conflitos à época.
Procurada, a embaixada do Japão no Brasil afirma que as reivindicações relativas às “mulheres de conforto” foram resolvidas em 1965 no acordo de retomada das relações com a Coreia do Sul e que, em 1995, o país ajudou a estabelecer um fundo de assistência às vítimas e ofereceu indenizações às mulheres atingidas.
A representação diplomática acrescenta que em 2015 ambos os governos confirmaram que a questão foi resolvida “de forma definitiva e irreversível” com um pacto fechado em reunião de chanceleres e que, no ano seguinte, o Japão repassou 1 bilhão de ienes (R$ 36 milhões) para uma fundação do governo sul-coreano dedicada ao tema.
O peso da resolução de questões históricas, porém, apresentou queda entre a opinião pública sul-coreana sobre as prioridades do governo em relação ao Japão, de acordo com a pesquisa do East Asia Institute. Se em 2021 o tema era o mais relevante, com 40,7% das respostas, agora o percentual corresponde a 31,5%, e a questão mais crucial é a promoção de uma parceria em economia, tecnologia, segurança e ambiente.
Os resultados são bons para o atual presidente, Lee Jae Myung, eleito há dois meses e cuja política externa é vista como pragmática, com a diferença de que não se esperam desse governo decisões que poderiam ser consideradas “humilhações diplomáticas” diante do Japão, como ocorreu durante a administração de Yoon.
“Há quem pense que temos de relembrar o passado e receber desculpas do Japão. Outros acreditam que tenhamos de focar o futuro. Parecem coisas diferentes, mas são bem ligadas”, diz Lee Myung-Hwa, diretora do Instituto de Estudos dos Movimentos Independentistas. “Se você esquece o passado, não há futuro. Temos de refletir e lembrar por que perdemos a nossa identidade nacional. E então teremos um futuro melhor.”
CRONOLOGIA
**1894-1895**
– Japão derrota a China e enfraquece a influência do país sobre a Coreia
**1895**
– Assassinato da imperatriz Myeongseong por agentes japoneses após buscar apoio russo
**1904-1905**
– Japão derrota a Rússia e consolida seu domínio sobre a península coreana
**1905**
– Coreia se torna um protetorado japonês, perdendo sua soberania diplomática
**1907**
– Abdicação do imperador Gojong após tentar denunciar o Japão na Conferência de Haia
**1910**
– Coreia é formalmente anexada pelo Japão, e a população coreana é privada de liberdade de reunião, de associação, de imprensa e de expressão, além de ter terras expropriadas
**1919**
– Movimento de 1º de Março, manifestação por independência fortemente reprimida pelo Japão. Depois do protesto, Tóquio permite um aparente grau de liberdade de expressão aos coreanos
– Criação do Governo Provisório da Coreia em Xangai, na China
**1931-1945**
– Proibição da língua e da cultura coreanas
– Recrutamento forçado de trabalhadores, soldados e ‘mulheres de conforto’ para o Exército japonês
**1945**
– Rendição do Japão na Segunda Guerra Mundial, em 15 de agosto
– Fim da ocupação japonesa na Coreia
– País é dividido em duas zonas de influência: soviética ao norte e americana ao sul
**1948**
– Proclamação da República da Coreia
**1950**
– Início da Guerra da Coreia