SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Caminhar pelas ruas, ir à feira, ao supermercado e voltar à vida normal são desejos da aposentada Ana Lúcia Martins, 66. Com obesidade mórbida e artrose na coluna lombar, nos joelhos e nos quadris, a mulher está internada no Conjunto Hospitalar do Mandaqui, em Santana, na zona norte de São Paulo, há quase cinco anos.
Segundo o irmão, Donato Martins Filho, 58, Ana Lúcia aguardava cirurgia para a colocação de uma prótese no quadril quando veio a pandemia de Covid e com ela o isolamento, a compulsão alimentar e a obesidade. Sem se locomover, não havia condições para a mulher permanecer em casa sozinha.
Em conversa com a reportagem na sexta-feira (8), no quarto 408 do Hospital do Mandaqui, a paciente contou que chegou a cair algumas vezes, tinha dificuldade respiratória e precisava tratar uma escara na perna. Com mais de 180 quilos, em outubro de 2020, a ida ao hospital foi inevitável.
De acordo com o relato da aposentada à reportagem, apenas os médicos residentes aparecem para vê-la, mas não abordam a possibilidade de um tratamento.
“Não adianta questioná-los porque eles não têm poder de decisão. Qualquer coisa sobre mim é encaminhada à gerente do andar e ela não toma providências”, diz.
A paciente recebeu alta social em março de 2021, segundo a advogada da paciente, Rosângela Juliano Fernandes. A condição garante à pessoa o direito de permanecer internada devido a vínculos familiares fragilizados. A mulher não pode morar sozinha e necessita de cuidados integrais. Ela é solteira e sem filhos. O irmão e a cunhada não conseguem cuidar dela nem contratar um profissional para a função.
Por não conseguir retirá-la do local, em 2023, o hospital ingressou com um processo de abandono de pessoa idosa contra Donato, que ficou três meses sem permissão para visitar a irmã.
“A situação ficou pior, porque hoje ela não consegue mais saber nada sobre a própria situação. Ela está jogada e esquecida. Quando surgiu esse processo, nós tivemos uma reunião com o Ministério Público. Perguntei ao promotor se ele conhecia a situação dela”, diz a advogada.
“O hospital trata a questão como se fosse uma pessoa tranquila de transportar, que anda, ou que você põe numa cadeira de rodas. Não é nada disso. Ela tem aproximadamente 180 quilos”, completa Rosângela, destacando que o irmão busca um relatório médico para transferir Ana Lúcia para o Hospital Dom Pedro 2º.
No hospital, Ana Lúcia observa a vida pela janela. Não se move e permanece o tempo todo deitada sobre a lateral do corpo. Assim se alimenta, toma medicação para dor, bebe água e é feita a higiene.
Ana deseja realizar tratamento contra a obesidade e voltar a viver em sociedade. “Quero fazer compras, ir a um shopping, ao teatro que é maravilhoso e bater perna lá fora como qualquer pessoa”, afirma.
Segundo ela, há cerca de dois anos, foi ofertada a cirurgia bariátrica. De início, Ana relutou. “Os funcionários me colocaram medo. Diziam que eu iria ter trombose e morrer. Uma assistente social falava para mim que bariátrica era besteira e eu iria engordar de novo”, relata.
Quando concordou com o procedimento, encorajada por um médico, outros profissionais disseram que não era o caso.
A fisioterapia foi cancelada. “Às vezes, vem alguém movimentar as minhas pernas e aí desaparece. Fica um tempo sem ninguém fazer isso. Sorte que eu mexo a panturrilha todo dia para não atrofiar”.
Na quarta-feira (13), a assistente social e uma psicóloga da 6ª Vara Cível do Fórum Regional de Santana visitaram Ana Lúcia no hospital, de acordo com a advogada.
“Quando ela [a paciente] começou a explicar a situação, a assistente social disse: você está de alta, por isso não te tratam mais. Como se isso fosse uma justificativa… Em todas as reuniões tem sido essa a justificativa. Como o irmão e a cunhada vão cuidar dela em casa se nem no hospital conseguem tirá-la da cama? E eles não têm recursos financeiros”, afirma Rosângela.
O QUE DIZ A SECRETARIA ESTADUAL DA SAÚDE
A Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo diz em nota que Ana Lúcia é acompanhada por equipe médica multidisciplinar e de assistência social, em articulação com o Creas (Centro de Referência de Assistência Social) Jaçanã/Tremembé por meio de reuniões periódicas para discussão e acompanhamento do caso.
Segundo a pasta, Ana Lúcia chegou à unidade em outubro de 2020, pelo Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), com obesidade mórbida, escara e infecção urinária. “Houve resolução do quadro infeccioso e fechamento da úlcera. No momento, não há indicação de cirurgia, devido à recusa da paciente ao tratamento clínico e à dieta nutricional, somada ao alto risco cirúrgico decorrentes das comorbidades”, diz a nota.
A secretaria disse ainda que a equipe médica enfrenta recusa da paciente em aderir ao tratamento e à reabilitação física e motora, o que compromete a evolução do quadro clínico. “Todas as alternativas terapêuticas possíveis foram adotadas, sem adesão satisfatória”, diz.
MÉDICOS SÃO SOBERANOS, DIZ ESPECIALISTA
Para Bianca Pires, sócia da área de Saúde do Villemor Amaral Advogados, o médico é soberano para dizer se a paciente está apta ou não à cirurgia bariátrica. A advogada também ressalta que Ana Lúcia é protegida pelo Estatuto do Idoso.
“O Estado é obrigado a garantir a ela tratamento médico adequado. O Estatuto de Idoso dá o direito de receber atendimento médico domiciliar, que me parece ser uma saída digna.”
Segundo Bianca, se houver indicação médica, o SUS [Sistema Único de Saúde] deverá custear um serviço de homecare com profissionais de saúde, o que não inclui cuidadores. “A pessoa precisa preencher os requisitos para necessidade de enfermagem”, explica.
Outra alternativa é a ILPI (Instituição de Longa Permanência para Idosos). Há várias unidades públicas, inclusive aptas a receber pacientes com necessidades especiais.
“Essa não é uma situação exclusiva de hospitais públicos. Acontece muito. A lei impõe o dever de guarda aos ascendentes e descendentes e na falta deles aos colaterais, que seria o irmão dela. É claro que há famílias carentes, com falta de recursos financeiros. Quando recorremos ao Estatuto do Idoso, vemos um planejamento estatal para dar condições à família para cuidar do paciente, como um treinamento, por exemplo. Na falta, tem as ILPIs”, explica a especialista.