SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um homem e uma mulher negros contemplam o horizonte a partir de um banco. Ela, de tranças e uma roupa quadriculada; ele, de óculos vermelhos e um casaco de estampa semelhante. O quadriculado, uma das características marcantes do trabalho de Miguel Afa, ocupa o campo de visão de ambos. No canto direito, está um vaso florido, inspirado nas obras do artista italiano Giorgio Morandi.

É um momento de apreciação, simplicidade e sintonia: a mulher encosta uma de suas pernas levemente no pé do homem, que tem seu rosto virado para ela e uma mão por trás de suas costas. A paleta pouco saturada exige tempo do espectador, e os tons ocres, terrosos e quentes passam uma sensação de calor apesar de certa melancolia.

A pintura, “Um Céu para Caber”, nomeia a primeira mostra individual de Miguel Afa em São Paulo, em cartaz na galeria A Gentil Carioca até 23 de agosto. Em entrevista à reportagem, o artista afirma que os trabalhos foram inspirados pela amplitude do céu como metáfora para explorar os limites do afeto.

As pinturas de Afa têm a mesma atmosfera intimista e paleta de baixo contraste, mas mostram diversas vertentes de afeto. Em “Bem de Amor”, duas pessoas se sentam em cadeiras de praia, de costas para o espectador, em frente ao mar. Já “Nuvens” transmite conforto e acolhimento, retratando um menino negro dormindo pacificamente em uma cama convidativa, pintada em tons róseos.

O artista carioca afirma que pinta suas próprias experiências, mas que dá a “liberdade para a memória existir”, explorando-a como algo que pode não ter sido vivido, mas que existe em seu imaginário por conta própria. “Esse meu universo onírico também é memória, porque é construído a partir de experiências que tivemos, de projeções nossas”, diz.

A paleta escolhida evoca uma recordação -seu caráter é mais turvo, diáfano, como uma fotografia em sépia. “Quando visito minhas memórias, os limites nunca são bem definidos”, aponta Afa. “Nunca são imagens claras, tão evidentes quanto o momento presente. É como na cor que vemos na fotografia ou no cinema, um ‘filtro’ da cor da memória”.

O artista relembra um episódio em que um amigo pensou que um de seus quadros, visto de longe, tratava-se de um pedaço de madeira. Mas para além da estética, as cores de sua arte dialogam com seu posicionamento político enquanto homem negro. “Essa cor mais desaturada, que é quase um cinza dramático, me dá a possibilidade de ir além da memória, mas também de fazer um paralelo com questões raciais”.

“Minha questão com a cor é de uma complexidade, de um acúmulo quase psicótico”, afirma. “A memória é imaterial, é suspensa. A espiritualidade é um resgate da memória também”.

Apesar de a mostra ser a primeira individual do artista na capital paulista, Afa já expôs em “Dos Brasis”, que estreou no Sesc Belenzinho em 2023. Exclusivamente dedicada à produção de artistas negros brasileiros, está em cartaz agora no Sesc Quitandinha, no Rio de Janeiro. Atualmente, exibe “O Vento Continua, Todavia”, em cartaz no Paço Imperial do Rio até 10 de agosto.

O carioca tem passagem pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas sua trajetória artística começou muito antes. Sua iniciação foi aos 13 anos, quando pegou na mão uma lata de tinta em spray e começou a se aventurar no grafite pelas ruas do Complexo do Alemão, na zona norte da capital fluminense.

Ao ingressar na UFRJ, ele se deparou com a possibilidade de criar para além do muralismo e da arte urbana, e assim começou o que considera seu “trabalho de ateliê”. “Antes de ir para o Parque Lage, para a UFRJ, eu aprendi a pintar nas ruas. Sempre digo que o grafite é a maior escola de pintura das margens do mundo inteiro -foi [por ele] que me construí como pintor”, afirma.

Apesar do afeto ser o tema da seleção de trabalhos, Afa explica que ele não necessariamente precisa ocorrer entre duas (ou mais) pessoas. Pode ser solitário, melancólico, mas igualmente carinhoso -como é o caso de “O Primeiro Amor Deve Ser o Próprio”. Na obra de título auto explicativo, uma criança negra está sentada em uma banheira, com a cabeça ensaboada e uma expressão tranquila.

“Caranguejo”, que também retrata uma pessoa submergida em uma banheira, tem o nome inspirado no signo de Afa -segundo ele, muitas das cenas pintadas são fruto do “universo de um canceriano”. Ele diz se inspirar pelo romantismo aparentemente banal -as cenas de pessoas em banheiras, por exemplo, dialogam com obras do francês Pierre Bonnard, do grupo pós-impressionista Les Nabis. Afa entrou em contato com obras do artista, que pintava sua amada, Marthe, na banheira -ela tinha um problema de saúde que tinha como tratamento os banhos terapêuticos- e a pureza da situação comoveu-o.

Apesar das referências cultas -em entrevista Afa citou Morandi, Bonnard, o abstracionismo geométrico de Josef Albers, entre outros- ele explica que essa pesquisa artística ocorre de maneira orgânica. “Sou um apaixonado por pintura… Essas informações adquiri através do meu interesse, são pesquisas feitas através da vida”, afirma. “Não me proponho a ser um artista que performa a genialidade ou usa um universo robusto de narrativas intelectuais. Quero seguir com uma coisa honesta, verdadeira, com o que está acontecendo dentro de mim”.