SÃO PAULO, SP, E BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Nos últimos anos, o Tribunal de Justiça de São Paulo recebeu uma explosão de processos relacionados à exploração sexual infantil. Enquanto em 2016 foram 36 casos registrados, em 2024 esse número subiu para 105.
O crime mais comum em apuração é o de satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente. Em 2025, os registros seguem em alta e devem bater um novo recorde no estado, já que, até julho, já foram abertos 95 processos.
Para Ariel de Castro Alves, advogado e membro da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o aumento está ligado ao uso crescente da internet por menores de 18 anos, mas também ao crescimento da conscientização da sociedade sobre violações de direitos digitais.
No entanto, o advogado destaca que esse tipo de crime ainda sofre com alta subnotificação. Ele afirma que apenas cerca de 10% dos casos de exploração sexual infantil fora do ambiente virtual chegam ao conhecimento das autoridades. “No ambiente digital, os índices são ainda menores. Ainda não se dá a devida importância ao combate.”
Casos de exploração sexual infantil estiveram no centro do debate político nesta semana, após a divulgação do vídeo “Adultização”, do youtuber Felca, que denuncia crimes contra crianças e adolescentes.
A gravação, de 50 minutos, já acumula mais de 30 milhões de visualizações e apresenta diversas situações em que crianças têm sua imagem explorada, tanto por pais quanto por outros adultos, que lucram com os vídeos publicados.
Após a repercussão do vídeo, o governo Lula (PT) anunciou que vai enviar ao Congresso um projeto de lei de proteção de crianças e adolescentes online. O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos), afirmou que o tema será prioridade e anunciou a criação de uma comissão e de um grupo de trabalho sobre o tema.
Durante a sessão plenária, na tarde desta terça (12), Motta fez um discurso e afirmou que o vídeo de Felca “expôs, de forma crua e dolorosa, uma ferida aberta no Brasil”. Segundo o presidente da Câmara, enfrentar a questão não é algo apenas urgente, mas uma obrigação moral.
“Proteger a infância não é um favor: é um dever. É um dever que antecede partidos, ideologias, disputas”, declarou.
Nos últimos dois dias, foram protocolados mais de 30 projetos de lei com o objetivo de combater a exposição indevida, a exploração sexual e outros crimes contra crianças e adolescentes na internet. Também está na mira a chamada adultização –situações em que, por exemplo, crianças aparecem em contextos sexualizados ou frequentando ambientes com adultos, como baladas.
Os projetos apresentados após o vídeo de Felca mobilizaram tanto parlamentares da esquerda quanto da direita. Entre os autores estão deputados federais do PL, como Nikolas Ferreira (MG), que propôs um projeto voltado à prevenção e ao combate à exposição indevida e à exploração de menores nas redes.
Deputados do PSOL, como Sâmia Bomfim (SP), também apresentaram propostas. O projeto de Sâmia proíbe a monetização direta ou indireta de conteúdo digital ou audiovisual veiculado em plataformas online que tenha como tema central a imagem ou participação de crianças e adolescentes.
Tabata Amaral (PSB-SP) também propôs um projeto para proibir a monetização. Em entrevista à Folha, a deputada afirmou que a rede de exploração existe porque há lucro. “Se não tivermos coragem de questionar, de acabar com a monetização fútil, as pessoas vão continuar encontrando subterfúgios para fazer isso”, afirma. “Enquanto for lucrativo explorar crianças, elas, infelizmente, continuarão sendo exploradas. Criança não é produto para ser vendido, não é produto para ser explorado.”
Quanto à quantidade de projetos protocolados sobre o tema, Tabata diz acreditar que algum será aprovado. “O que eu não sei dizer hoje é se vai ser alguma coisa só para inglês ver, para surfar na onda, ou se será algo realmente efetivo”, comentou.
Ariel, da OAB, defende que a repercussão do vídeo deve ser aproveitada para que novas legislações avancem. Ele lembra que, apesar de a regulamentação das plataformas estar em debate há meses, o tema era alvo de resistência da direita, que alegava riscos à liberdade de expressão.
“Com o clamor popular, há um ambiente mais favorável para esse debate sobre regulamentação e proteção de crianças e adolescentes. É um momento propício, e por isso é necessária também celeridade na consolidação dessas legislações”, afirmou.
A proposta mais avançada é o PL 2628/2022, do senador Alessandro Vieira (MDB-SE). O texto já foi aprovado no Senado e estava na pauta da Câmara na semana passada, para votação de um requerimento de urgência.
O projeto trata da proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais, estabelecendo regras sobre coleta de dados e publicidade infantil. Para a Data Privacy Brasil, organização que promove a proteção de dados e dos direitos digitais, o PL de Vieira deve ser priorizado e aprovado.
Segundo Rafael Zanatta, diretor da entidade, este é o momento ideal para aprovar o projeto. Ele alerta que a Câmara não deveria desperdiçar tempo analisando todos os novos projetos protocolados.
Para ele, “deputados operam por pressão”. No entanto, a Câmara precisa manter o controle do processo, e Motta deve orientar os líderes a priorizarem o PL de 2022 e, eventualmente, aprovarem projetos complementares.
Zanatta também lembra que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) foi criado em 1990, quando a internet ainda era usada majoritariamente para fins acadêmicos. Mais tarde, o Marco Civil da Internet, de 2014, trouxe algumas diretrizes, mas com foco na responsabilidade das empresas em garantir direitos fundamentais, com apenas uma recomendação sobre controle parental.
Agora, ele acredita que o projeto de Alessandro Vieira tem o potencial de endurecer as regras e evitar brechas para exploração comercial, assédio, intimidação e abuso sexual -os principais problemas relatados atualmente.
“Há um PL há mais de três anos. O Felca impulsionou a agenda, que, com o tarifaço e outras questões, vinha perdendo espaço. Agora, ela está na ponta da esfera pública”, conclui Zanatta.