SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O vídeo publicado na quarta-feira (6) pelo influenciador Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, acendeu o debate sobre os riscos à saúde mental de crianças e adolescentes que são expostos nas redes sociais. Um ponto do vídeo chama a atenção: muitas das vítimas envolvidas nos casos de exploração e sexualização não se consideram abusadas e defendem os adultos responsáveis pela violação.
Nos vídeos que o influenciador denuncia, crianças e adolescentes aparecem em situações sexualizadas e adultizadas. Por exemplo, fazendo danças sensuais, com pouca ou até nenhuma roupa, em momentos de intimidade na cama e no banho e por vezes envolvendo bebidas alcoólicas.
A não percepção do abuso como sendo de fato uma violência é mais comum quando se tem um vínculo com o agressor/expositor. A psicanalista Daniela Teperman, doutora em Psicanálise e Educação pela FEUSP (Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo), diz que há a percepção de corresponder ao amor e à expectativa, na tentativa de não desagradar aquele adulto.
“Já escutei muito no consultório de mulheres adultas que tiveram experiências de abuso na infância, o quanto ser a escolhida, ser a preferida, como acaba sendo um subterfúgio muito grande para sedução”, comenta.
Segundo a psicanalista, há uma mistura de sentimentos entre o acolhimento e o afeto recebido pelo familiar e o mal-estar que a criança não consegue nomear por estar vivendo uma violência de uma pessoa que deveria ser de confiança.
Além da validação pelo adulto que se tem o vínculo, a criança é recompensada com likes e aprovações. “A questão é justamente que a gente acredita que ela não tem discernimento de tomar essas decisões, assim como seria com o uso de drogas”, diz o psiquiatra da infância e da adolescência Arthur Caye, gerente de pesquisa do Centro de Pesquisa e Inovação em Saúde Mental (CISM).
Algumas crianças e adolescentes citadas no vídeo do influenciador Felca são emancipadas, o que é frequentemente usado como uma justificativa para implicar a autonomia desses jovens. “É um uso muito perverso da emancipação, quase como se dissesse que são adultos”, afirma Teperman. Mesmo emancipados civilmente, adolescentes seguem respondendo ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que preconiza a proteção de crianças e adolescentes contra toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Apesar de alguns dos adolescentes não perceberem os prejuízos que essa superexposição e exploração podem causar, eles existem. Caye afirma que a superexposição e a sexualização infantil equivale ao abuso sexual. “A exposição sexual precoce, mesmo sem contato físico, configura um estressor crônico para o cérebro em desenvolvimento”, diz.
O psiquiatra afirma que há evidências que indicam alterações importantes em partes cerebrais, como o hipocampo, a amígdala e o córtex pré-frontal, que são regiões críticas para memória, regulação emocional e tomada de decisão; além de modificar a resposta ao estresse e à substância branca do cérebro, o que pode comprometer a integração entre processamento emocional e controle executivo.
“Essas alterações neurobiológicas se associam a aumento do risco para depressão, transtorno de estresse pós-traumático, transtornos de ansiedade e uso problemático de substâncias, frequentemente persistindo até a vida adulta”, conta.
Segundo o psicólogo Richard Reichert, doutor em ciências pela Escola Paulista de Medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), a adultização antecipa papéis sociais e referências culturais incompatíveis com o estágio de desenvolvimento daquela criança ou adolescente.
“Isso faz com que passem a adotar padrões de interação social típicos de pessoas adultas, afetando a formação da autoimagem e da autoestima, gerando fragilidades emocionais que dificultam o reconhecimento de seus próprios limites e necessidades”, diz.
Essas vivências podem afetar também como essas pessoas desenvolvem relacionamentos no futuro, prejudicando a construção de confiança e de vínculos saudáveis. Apesar de nenhuma experiência determinar um comportamento específico e o desdobramento variar de pessoa para pessoa, as respostas a traumas passados tendem a impactar na construção de identidade e a saúde mental dos indivíduos.
Bianca Orrico, psicóloga e doutora em estudos da criança pela Universidade do Minho, em Portugal, atua no canal de ajuda e em projetos de educação da SaferNet, alerta para a dimensão pública da internet e os riscos potenciais da exposição relacionados à privacidade, segurança e o desenvolvimento saudável.
“[A superexposição] Potencializa situações envolvendo abuso e exploração sexual, cyberbullying, chantagem com imagens íntimas (extorsão sexual), uso indevido de fotos e vídeos para montagem ou compartilhamento não consensual e compartilhamento de dados sensíveis.”
A SaferNet fez um relatório, encaminhado ao Ministério Público Federal, à Polícia Federal e a autoridades francesas que revela que mais de 1,25 milhão de usuários do Telegram no Brasil estão em grupos em que ocorrem a venda e o compartilhamento de imagens de abuso sexual infantil e outros crimes.
Apesar das instâncias públicas serem responsáveis pela regulamentação e apoio à segurança da população, a família segue tendo um papel fundamental na proteção e supervisão das crianças e adolescentes.
“A mediação parental ativa contribui para o desenvolvimento de habilidades de autorregulação, ajuda a interpretar e filtrar conteúdos, minimizando potenciais riscos emocionais e sociais”, diz Reichert. Entretanto, ele pontua que essa responsabilidade não deve recair exclusivamente sobre as famílias, já que o ambiente digital é complexo e permeado por interesses comerciais e algoritmos que incentivam a exposição excessiva.
Orrico afirma que a promoção de um ambiente digital seguro depende do envolvimento de toda a sociedade, principalmente na orientação de crianças e adolescentes. “Para protegê-las nas suas experiências online, é fundamental o envolvimento das famílias, da escola, do estado, mas também é imprescindível o comprometimento das empresas que se beneficiam economicamente da presença desse público nas plataformas.”