SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 2003, o colunista Nelson Ascher publicou na Folha de S.Paulo uma espécie de obituário do pensador palestino Edward Said. O texto criticava Said de maneira dura, descrevendo sua celebrada obra “Orientalismo”, de 1978, como “raivosa” e “perniciosa”.

Ascher incomodou a comunidade árabe brasileira, que organizou um manifesto de 187 intelectuais em defesa de Said. Entre eles, o geógrafo Aziz Ab’Sáber, a filósofa Marilena Chauí e o escritor Milton Hatoum. O protesto culminou, no ano seguinte, na fundação do Icarabe (Instituto da Cultura Árabe) e, em 2005, em uma mostra de cinema em São Paulo.

A Mostra Mundo Árabe de Cinema vingou nestas duas últimas décadas. Chega agora à sua 20ª edição com 18 filmes, sendo 12 deles inéditos. Como um aceno à sua história, o festival vai reexibir cinco títulos que marcaram as edições anteriores. O evento, copatrocinado pela Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, começa no CineSesc nesta quarta (13) e segue até 7 de setembro, com exibições também no CCBB-SP.

“Existia um público sedento por filmes do mundo árabe”, diz Soraya Smaili, uma das idealizadoras da mostra. Ainda não havia streaming e, para muitos, o festival era uma das únicas oportunidades para conhecer o cinema de lugares como a Síria, o Líbano e o Iraque.

O momento, sugere Smaili, ainda exige esse tipo de trabalho, que ela descreve como uma maneira de combater estereótipos sobre o Oriente Médio —como aqueles proferidos contra os palestinos, representados no espaço público como terroristas. “Combatemos esse discurso desumanizador que tenta fazer com que os palestinos não existam”, afirma.

A figura de Edward Said marcou as duas décadas de festival, assim como um enfoque na causa palestina. Um dos primeiros filmes exibidos em 2005 foi justamente uma biografia sobre ele. “Said é uma espécie de padrinho da mostra”, diz Smaili. “Começou por causa dele.”

Smaili se lembra das agruras daqueles primeiros anos, em que, sem formatos digitais, tinham de lidar com a burocracia de trazer películas para o país. Às vezes, quando a coisa enroscava na alfândega, pediam a ajuda das embaixadas árabes. Pelejavam, depois, para traduzir e legendar todos os filmes. Hoje, o instituto tem um acervo de quase 400 títulos.

Um dos pontos de inflexão na história do festival foi a onda de protestos que tomou o Oriente Médio em 2011, levando à queda de ditaduras na Tunísia, no Egito, no Iêmen e na Líbia, além de catalisar uma guerra civil na Síria —encerrada apenas em 2024, com a queda de Bashar al-Assad. O noticiário internacional fomentou, naquele ano, um interesse maior do público por essas produções.

Os anos de pandemia estremeceram o festival, que teve duas edições virtuais. Por outro lado, foi também uma oportunidade de exibir os filmes a um público mais amplo, fora do eixo cultural de São Paulo, diz Smaili. Foi apenas em 2023 que voltou a ser presencial.

O enfoque da mostra na causa palestina está claro na edição deste ano, motivado não só por seu histórico, mas também pela situação atual. Após quase dois anos de guerra, o governo de Israel aprovou no último dia 8 a ocupação da Cidade de Gaza. Segundo a imprensa israelense, a proposta deve levar à expulsão de cerca de 800 mil civis do local.

O filme de estreia, no dia 13, será “Tudo que Resta de Você” (2025), da diretora palestino-americana Cherien Dabis, sobre os deslocamentos forçados de uma família palestina. Dabis é um dos nomes em ascensão do cinema de língua árabe. Nos Estados Unidos, dirigiu episódios das séries “Only Murders in the Building”, “Ozark” e “Ramy”.

Já no catálogo de filmes de edições anteriores, o destaque é o documentário “Cinco Câmeras Quebradas” (2011). Trata-se dos registros feitos pelo agricultor palestino Emad Burnat —por coincidência, casado com uma brasileira— em seu vilarejo, mostrando as ações das forças de segurança israelenses.

DESTAQUES DA PROGRAMAÇÃO

Abertura: “Tudo que Resta de Você” (2025), de Cherien Dabis

13 de agosto, às 20h, no CineSesc

“Sudão, Lembre-se de Nós” (2024), de Hind Meddeb

“Fidai: Verão de 1982” (2023), de Kamal Aljafari

“Porta do Sol” (2004), de Yousry Nasrallah

“Cinco Câmeras Quebradas” (2011), de Emad Burnat