BERLIM, DF (FOLHAPRESS) – A pedido de ruralistas, o Congresso flexibiliza a legislação ambiental, deixando a cargo do presidente um eventual veto sobre seu ponto mais polêmico. O roteiro é parecido com o da novela do licenciamento no Brasil, mas, na França, uma forte reação da opinião pública concorreu para outro tipo de final: a manutenção da proibição de um pesticida, a despeito do lobby dos fazendeiros e da aprovação de amplo espectro na Assembleia Nacional.

Proposto em maio pelos senadores Laurent Duplomb Franck Menonville, o projeto de lei que visava “eliminar as restrições ao exercício da profissão de agricultor”, segundo definição do próprio texto, tinha como item sensível a reabilitação da acetamiprida, um pesticida neonicotinóide banido na França em 2020.

A liberação do inseticida, na argumentação de seus defensores, alinharia a França à legislação de outros países do continente. Em determinadas plantações, o produto está permitido até 2033 pela Comissão Europeia. Os franceses dizem que não conseguem controlar as pragas como seus vizinhos, principalmente nas culturas de beterraba e noz, o que configuraria concorrência desleal.

A acetamiprida, como muitos agrotóxicos, tem impacto sobre insetos polinizadores, algo que também prejudica a atividade rural. A população de abelhas e outros insetos voadores na Europa teria declinado 80% em três décadas, na avaliação de cientistas.

Curiosamente, o governo francês, nos últimos anos, apresentou mais de uma vez argumentos para a proibição da substância à Comissão Europeia. Os pedidos não caminharam, apesar de Bruxelas ter concordado que havia incerteza sobre os efeitos colaterais do produto. Ainda que na vanguarda de diversas legislações, a União Europeia, com 27 países-membros, convive com processos burocráticos morosos e complexos.

Um dos estudos apresentados pela França à Comissão mostrava traços de contaminação no cérebro em um pequeno grupo de crianças suíças. A pesquisa foi reproduzida e confirmada em populações maiores. No ano passado, devido às novas evidências, os limites de uso da acetamiprida foram divididos por cinco no regramento europeu.

Em julho, a partir da aprovação do projeto, que acabou se tornando conhecido como Lei Duplomb, um abaixo-assinado foi protocolado na Assembleia Nacional. Relatos de graves consequências neurológicas provocadas pelo produto e similares inundaram a imprensa e as redes sociais.

A petição, proposta por uma estudante de 23 anos, ganhou a adesão de 500 mil pessoas em dez dias e já tinha superado os 2 milhões oito dias mais tarde.

“A inteligência coletiva existe e triunfará mais cedo ou mais tarde”, declarou Eleonore Pattery no Linkedin. Ela evita a imprensa e pede, com algum humor, que os jornalistas não incomodem sua família, seus amigos, sua escola e até seu clube esportivo.

A movimentação popular provocou a criação de uma comissão suprapartidária na Assembleia Nacional, que não recuou e acabou ratificando grande parte do projeto –além da liberação do pesticida, o diploma prevê uma série de flexibilizações da atividade rural, como a construção de açudes.

A agricultura na França é muito diferente da do Brasil, mas a ascendência sobre o Legislativo e o Executivo é uma característica comum. O maior exemplo disso é a oposição ao acordo UE-Mercosul, reiterada com frequência pelo presidente Emmanuel Macron, a despeito do trato fazer falta aos dois lados diante do tarifaço de Donald Trump.

Na fragmentada Assembleia Nacional francesa, a Lei Duplomb navegou com facilidade, sendo amplamente aprovada pela direita e pelo centro. Antes receptivo ao projeto, o governo Macron acabou colocado na corda-bamba pela opinião pública. Duplomb lamentou o que chamou de instrumentalização do tema pelo Partido Ecologista e pela esquerda.

Cerca de um mês após a aprovação da lei, o Conselho Constitucional, provocado pelos oposicionistas, censurou na semana passada o trecho da legislação que prevê a liberação do pesticida. Segundo o órgão, que fiscaliza a constitucionalidade de atos do Legislativo e do Executivo francês, a Lei Duplomb fere o princípio da precaução.

Em comunicado, o Conselho explicou que, de acordo com a Carta francesa do Meio Ambiente, “o legislador deve, ao adotar medidas suscetíveis de causar danos graves e duradouros a um ambiente equilibrado e saudável, garantir que as escolhas destinadas a atender às necessidades do presente não comprometam a capacidade das gerações futuras e de outros povos de satisfazer suas próprias necessidades, preservando sua liberdade de escolha a esse respeito”.

Logo após a decisão, o Palácio do Eliseu declarou que o presidente Macron “tomou nota da decisão do Conselho Constitucional” e que promulgaria o texto “tal como resulta dessa decisão, o mais rapidamente possível”. Um aceno aos ruralistas veio quase na mesma hora, por intermédio da ministra da Agricultura, Annie Genevard. “Há uma diferença entre o direito francês e o europeu que mantém as condições de concorrência desleal.”

O senador Duplomb, por sua vez, declarou que estuda apresentar um novo projeto, capaz contornar os limites sublinhados pelo Conselho Constitucional.