(FOLHAPRESS) – Se há um fantasma persistente no cinema brasileiro é o do filme “bem feito”. Ele se instalou entre nós nos tempos da Vera Cruz, quando tivemos pela primeira vez as condições para perseguir a “qualidade internacional” que almejávamos.
Desde então, vivemos atrás desse filme que teima em se esconder de nós. O caso mais recente é o de “Os Enforcados”. Ele lembra, de imediato, aquilo que Helena Ignez disse, quando perguntada sobre o que achava de um antigo filme em que ela fora atriz, “O Assalto ao Trem Pagador”. Ela respondeu: “É um filme feito”.
Se eu a interpreto direito, com esse enigma, ela pretendeu nomear um filme que gira em torno da própria perfeição. Um filme que se faz antes mesmo de ter sido feito. E essa foi a impressão que me deixou “Os Enforcados”, que me impressionou cem vezes menos que o “Trem Pagador”.
Fiquemos com a intriga -de início nos vemos diante de Regina (Leandra Leal), dona de casa que supervisiona a reforma de sua cinematográfica mansão. Logo seu marido, Valério (Irandhir Santos), chega e diz a ela que está quase falido.
Que fazer? Vender a sua parte na sociedade que mantém com o tio. Ele bem tenta, mas nesse momento começamos a perceber que existe algo de estranho em tudo isso. O tio se recusa a comprar a parte dele. Propõe que ele tome conta do negócio por uns tempos, pois precisa desaparecer. Sabemos então que seus negócios são bem escusos, que ele é deputado, mandou matar o irmão, o pai de Valerio, e agora precisa sumir por uns tempos. Mas confia no sobrinho, porque ele é “da família”.
Valerio assume a direção dos negócios, que envolvem jogo do bicho, tráfico, escola de samba, lavagem de dinheiro e outras barbaridades conexas. Logo se dá conta de que esse é um negócio sangrento -mas não tinha se dado conta ainda?. Passa a lutar nesse fronte, mas a força real por trás dessa luta é Regina. A força, mais que isso -a vontade, o cérebro. Eis Lady Macbeth de volta.
Nesse ponto, “Os Enforcados” faz lembrar outro filme, “Trabalhar Cansa”, em que um casal compra um supermercado, em cujas paredes começam a surgir estranhas manchas. E quanto mais o casal se empenha em perseguir a mancha, mais ela trata de aumentar.
Quero dizer, a mancha é um mistério real. Enquanto o casal tenta decifrá-lo, ele se torna mais enigmático. Já Regina olha para a própria parede e vê ali manchas que nenhum pintor consegue encontrar. É que aqui as manchas estão na cabeça de Regina. Manchas simbólicas.
A cabeça de Regina é o fundamento do filme, sabemos desde que ela arrebenta a marretadas uma estátua de expressão maligna que alguém pretende plantar no seu quintal. Quando ela, insegura, busca uma cartomante, ouve dela para ficar atenta a uma grande oportunidade que surgiria para ela e Valerio. A cartomante é a própria mãe.
Regina confia no vaticínio misterioso. E confia por quê? Porque que a mãe é “da família”. Assim também o tio confia em Valerio porque ele é “da família”. Valerio confia cegamente no motorista porque foi criado junto com ele: “É meu irmão”, diz, portanto, é da família.
E, enquanto a tragédia se desenha, esses personagens -e mais alguns- empenham-se todo o tempo em não falar a verdade uns aos outros. A rigor, suas mentiras são quase sempre desculpas esfarrapadas que ajudam a trama a seguir adiante. Mas o interlocutor, que também mente e esconde fatos, acredita ou finge que acredita.
Assim vai seguindo o drama, sempre apoiado no roteiro e com não poucas intervenções mitológicas ou simbólicas, que parecem reduzir o filme ao bater constante de uma máquina de costura.
Sim, porque deixando todos esses problemas de lado, temos aqui um filme impecável. Leandra Leal está soberba do começo ao final. E é seguida por um elenco muito bem dirigido, equilibrado sempre, puxado por Irandhir Santos.
Também é interessante investir na observação de um meio em que o dinheiro é tudo -o começo e o fim. Essa, aliás, é a marca distintiva de Regina. Ela poderia viver muito bem e feliz, ignorando a sujeirada ao seu lado. Mas não. O perigo de ficar pobre a leva para o centro da sanguinolência.
O tema não é tolo, a direção de arte nunca decepciona, a fotografia podia ser um pouco menos escura, mas, enfim, tudo bem. Mas os personagens se entregam a um jogo de enganos ingênuos, de crença não só cega como tola na família.
Enfim, todos os problemas, assim como as virtudes, desembocam na direção de Fernando Coimbra, que nos remete de volta ao enigmático “filme feito” de que falou Helena Ignez -ela que, por sinal, foi uma Lady Macbeth inesquecível na montagem de “Titus Macbeth” de alguns anos atrás.
“Filme feito” é como prato pronto. Chega à mesa todo arrumadinho. Assim como “Os Enforcados”, que tem algo de mecânico que faz com que tudo pareça estar feito antes mesmo de ser feito. Tudo ali é milimetrado para significar aos olhos do espectador -para além dos símbolos e mitologias que evoca-, “um filme de qualidade”.
Essa obsessão envolve os filmes. Assim como os personagens não dão um passo sem que o dinheiro resuma todas as ambições possíveis na vida, os autores do filme permitem que todas as suas virtuais virtudes se consumam na ambição da “qualidade” que absorve até mesmo a boa direção do ótimo elenco: o fantasma da Vera Cruz não nos abandona.
OS ENFORCADOS
Avaliação Regular
Quando Estreia qui. (14) nos cinemas
Classificação 18 anos
Elenco Leandra Leal, Irandhir Santos, Irene Ravache
Produção Brasil, 2024
Direção Fernando Coimbra