SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um grupo formado por pesquisadores, juristas, profissionais da saúde, artistas e comunicadores acaba de lançar a primeira associação brasileira em prol do direito à morte assistida, a Eu Decido. A organização se inspira em iniciativas semelhantes já existentes no mundo, como a Derecho a Morir Dignamente (direito de morrer dignamente), da Espanha, fundada em 1983 e que só viu seu ideal de morte digna consolidado por lei em 2021.

Um dos idealizadores é o guitarrista Andreas Kisser (Sepultura, De La Tierra, Kisser Clan), que perdeu a esposa, Patrícia, em 2022, devido a um câncer.

“Eu não sabia que se podia dizer ‘não’ para um médico. Tinha uma ideia muito superficial do que era cuidado paliativo, quando ele deveria entrar e por quê. No caso dela, seria clássico para eutanásia: consciente, mas sem funções físicas relevantes, apenas apertando a maquininha de morfina. Mas essa opção não existia; ninguém fala sobre o assunto”, lembra.

A partir dessa experiência, ele criou o Movimento Maetricia, com o propósito de estimular o debate público sobre morte e finitude, e promove o Patfest, festival que já reuniu artistas como Chitãozinho e Xororó, Sandy, Dinho Ouro Preto, Chico César e outros e cuja quarta edição está marcada para 26 de novembro deste ano.

“O mais importante é a divulgação de que esse cuidado existe. Eu mesmo não sabia o que era um hospice [serviço especializado em cuidados paliativos, com foco em conforto e dignidade, não em cura]. Hoje vejo que, quanto mais respeitamos a finitude, mais valorizamos o presente”, diz.

Os recursos arrecadados pelo Patfest são destinados a instituições que levam e ampliam cuidados paliativos para onde esse serviço especializado é escasso, como a Favela Compassiva.

A presidente da associação é a advogada e professora Luciana Dadalto, especialista em bioética e em testamento vital -documento que registra antecipadamente as decisões de uma pessoa sobre tratamentos médicos que deseja ou não receber caso não possa se expressar no futuro.

Embora as temáticas de testamento vital, cuidados paliativos e morte assistida tenham interfaces entre si, a nova associação enfrenta um terreno particularmente pedregoso. Para que pessoas com doenças graves, conscientes e em sofrimento intolerável possam escolher como morrer, é preciso que a lei mude.

Um dos principais obstáculos jurídicos é o artigo 122 do Código Penal, que prevê pena de dois a seis anos para quem induzir, instigar ou auxiliar outra pessoa a se suicidar -incriminando, portanto, o suicídio assistido e outras formas de morte assistida. Esse enquadramento criminal não faz distinção entre casos de sofrimento intolerável em doenças graves e incuráveis e outras situações, o que impede qualquer prática legal nesse sentido.

Dadalto reforça que não é função da Eu Decido auxiliar ou facilitar o processo de morte assistida propriamente dito, tampouco fazer ponte com organizações estrangeiras que dão esse suporte. Há entidades suíças, por exemplo, que recebem estrangeiros nessas condições a um custo aproximado de R$ 70 mil.

“Queremos levar à população a informação de que existe hoje, no Brasil, uma associação que luta pelo reconhecimento da morte assistida como um direito. Não é uma corrida de cem metros, é uma maratona. E a gente sabe que essa é uma conversa que vai levar tempo.”

Para avançar nas discussões, foram criadas comissões especializadas para iniciar conversas com diferentes setores -de religiões a conselhos de classe da saúde. O CFM (Conselho Federal de Medicina), por exemplo, tem adotado ideais pró vida e posições antiaborto.

Não deve ser trivial conduzir essa conversa, mas os fundadores ressaltam que, por se tratar de um direito individual -diferentemente do aborto, quando se enxerga o feto como parte interessada envolvida–, o caminho pode ser menos espinhoso.

“Se você não concorda [com morte assistida], simplesmente não escolha para você. Ninguém vai ser obrigado a seguir esse caminho. Mas me deixe ser livre na minha escolha”, defende Andreas Kisser. “É um tema social amplo, que envolve jornalistas, capelães, profissionais de saúde, pacientes e leigos. Viver com dignidade inclui ter o direito de escolher como e quando encerrar a própria vida”, acrescenta Dadalto.

Entre os temas a serem levados a esses encontros está o esclarecimento de que a defesa da morte assistida feita pela associação não inclui casos de transtornos mentais ou sofrimento psíquico isolado, e sim situações de doenças graves, incuráveis e em estágio avançado, em que o paciente mantém plena capacidade de decisão.

A Eu Decido adota a nomenclatura da Federação Mundial de Direito de Morrer: “morte assistida” é o termo guarda-chuva. Quando a substância letal é administrada por um médico, convenciona-se que é “eutanásia”. No suicídio assistido, ou morte assistida autoadministrada, o médico prescreve a medicação e o próprio paciente a toma.

No contexto global, o tema avançou em países como Bélgica, Holanda, Canadá e Nova Zelândia. Na América Latina, a Colômbia garantiu o direito por decisões judiciais, o Equador descriminalizou a prática em 2024 e, no Peru, a autorização ocorreu de forma individual, por decisão da Suprema Corte em 2022.

Entre os fundadores da Eu Decido estão dois jornalistas que também publicaram obras sobre o tema. “O Dia em que Eva Decidiu Morrer”, de Adriano Silva (Vestígio, 2025), narra a história real de uma brasileira que optou pelo suicídio assistido na Suíça, explorando ainda aspectos jurídicos e éticos da decisão. Já “O Último Abraço – Uma História Real sobre Eutanásia no Brasil”, de Vitor Hugo Brandalise (Record, 2017), reconstrói o caso de um casal de idosos que decidiu morrer junto, explorando o contexto afetivo, social e legal dessa escolha.

A Eu Decido não tem apoio de empresas e é aberta a novos membros, que contribuem com uma mensalidade de R$ 35 e participam das decisões.

“Não é um modelo em que você paga e recebe um jornalzinho ou desconto em congresso. Ser membro é fazer parte de fato, ajudando a decidir os rumos e a financiar o movimento”, diz Dadalto.