SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O imunologista Victor Nussenzveig, referência internacional no combate à malária, morreu nesta segunda-feira (11) aos 97 anos.
Em nota, a presidente da Academia Brasileira de Ciências, Helena Nader, afirmou que “a ciência brasileira perdeu hoje um grande cientista e humanista, que, apesar de afastado do país por alguns anos em função da ditadura militar, nunca deixou de ser um brasileiro.”
Quando cursava medicina na USP (Universidade de São Paulo) no final dos anos 1940, o jovem militante comunista Victor havia se engajado muito mais com a política do que com os estudos. Ele queria fazer algo importante para o mundo. Mas sua colega e namorada, Ruth Sonntag, conseguiu convencê-lo de que a ciência seria o melhor caminho para alcançar esse objetivo.
Esse rumo conduziu os dois jovens idealistas não só para um longo e feliz casamento, mas também para duas sólidas carreiras científicas na área da saúde. Seus estudos se tornaram referências internacionais no combate à malária, que é uma das doenças parasitárias que mais vítimas causam no mundo, principalmente em países tropicais, como o Brasil.
Nascido em São Paulo em 11 de fevereiro de 1928, Victor foi o segundo filho do mascate judeu Michel Nussenzveig e sua mulher, Regina. O casal de imigrantes, que morava no bairro do Bom Retiro, veio da Polônia, fugindo dos ataques violentos e sistemáticos de antissemitas, semelhantes aos chamados “pogroms” da Rússia.
Apesar de sua intensa militância política, inclusive na campanha “O Petróleo é Nosso!”, que levou à criação da Petrobras, Victor dava aulas particulares para ajudar financeiramente sua família. Assim faziam também seus irmãos Israel, o mais velho, que se tornou nefrologista e professor da USP, e o caçula Moyses, que teve uma carreira científica de sucesso como físico no Brasil e principalmente nos Estados Unidos.
Ao visitar Ruth após ela ter sofrido um pequeno acidente, Victor percebeu que estava realmente apaixonado pela jovem imigrante austríaca, que tinha a mesma idade dele. Nascida em Viena, ela veio ao Brasil com sua família aos 11 anos, em 1939, para fugir da perseguição nazista a judeus em seu país, anexado pela Alemanha de Hitler.
O jovem casal conquistou seus primeiros avanços científicos quando ambos ainda eram estudantes de medicina. O ponto de partida foi o nojo que os dois namorados tinham com a forma com que se diagnosticava a doença de Chagas.
Nesse diagnóstico, insetos barbeiros não contaminados pelo parasita Trypanosoma cruzi sugavam sangue de pacientes para depois de um tempo servirem de amostras em análises para detectar o microrganismo.
Depois de muitas tentativas e erros, os dois estudantes descobriram que a tripa de boi é eficiente para simular a pele humana na atração dos insetos. Com isso, todo o diagnóstico pode ser feito in vitro com amostras de sangue colhidas de pacientes com seringas, dispensando o contato repugnante com os insetos.
CARREIRAS
Victor e Ruth se casaram em 1953, o mesmo ano em que se formaram. Depois disso, além de clinicarem, eles trabalharam na USP como assistentes de pesquisas do catedrático de parasitologia Samuel Barnsley Pessoa (1898-1976). Nesse período, Victor teve também a orientação em imunologia de Michel Rabinovitch (1926-), que mais tarde, exilado, foi seu colega na NYU (Universidade de Nova York).
Depois de obterem o doutorado em 1958, os dois jovens cientistas entenderam que o melhor que poderiam fazer para avançarem como pesquisadores era saírem do Brasil. A melhor alternativa parecia ser os EUA.
Em suas primeiras tentativas para conseguir bolsas para ele e sua mulher, Victor foi aconselhado a procurar outro país. Judeu e comunista, ele era uma combinação complicada para um candidato a uma bolsa nos EUA. A Guerra Fria ainda gerava muita discriminação, mesmo após o fim da “caça às bruxas” do Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso.
O casal conseguiu bolsas de pós-doutorando na França. Em Paris, enquanto sua mulher atuava em bioquímica no prestigiado Collège de France, Victor se dedicou a pesquisas no Instituto Pasteur sob a orientação do imunologista Pierre Grabar (1898-1986).
Em 1960, ao retornarem ao Brasil, os dois retomaram suas atividades na USP. Mas logo se deram conta que para continuar trabalhando aqui teriam de desacelerar o ritmo de suas pesquisas.
“Havia sempre problemas menores. Nada muito sério. Mas verificamos que, no Brasil, não dava para fazer o que queríamos de forma rápida. Queríamos aprender mais, avançar mais”, disse Victor em uma entrevista para a revista Pesquisa Fapesp em 2004.
O casal decidiu tentar novamente ir para os Estados Unidos, onde as condições para investimentos em pesquisas eram muito melhores do que em muitos países, principalmente na área de doenças tropicais.
Dessa vez, Victor conseguiu uma bolsa da Fundação Solomon R. Guggenheim e seguiu para Nova York. Na NYU, ele estudou sob a orientação de Baruj Benacerraf (1920-2011), ganhador do Nobel de Medicina em 1980 por suas contribuições à compreensão dos fatores genéticos associados às células do sistema imunológico na detecção de agentes que não pertencem ao mesmo organismo.
Enquanto isso, Ruth trabalhou também na mesma instituição, mas na equipe do parasitologista húngaro Zoltan Ovary (1907-2005), que colaborou com os estudos premiados de Benacerraf.
Apesar de todos os alertas dos amigos no Brasil para não retornarem, o casal chegou a São Paulo em abril de 1964, pouco depois do golpe militar. Nos primeiros dias no país, ainda sem ter retomado suas atividades na USP, Victor foi obrigado a prestar esclarecimentos a um coronel que ocupava uma sala da diretoria da Faculdade de Medicina, onde conduzia inquéritos policiais.
Alguns meses depois, quando o casal se deu conta de que teria dificuldades crescentes no Brasil, duas oportunidades surgiram justamente na NYU, onde estiveram. Ovary recomendou Ruth para uma vaga recém-aberta na área de parasitologia. E Benecerraf, que precisava de reforço em sua equipe, convidou Victor. Com isso, ambos retornaram aos EUA em 1965.
SEPARAÇÃO
A volta à NYU marcou uma separação das carreiras do casal. Enquanto Victor seguiu suas atividades em imunologia, sua mulher se concentrou cada vez mais na parasitologia, com foco especial nos protozoários do gênero Plasmodium, causadores da malária.
Em pouco tempo, Victor se tornou chefe do Departamento de Patologia da Escola de Medicina, onde teve atuação decisiva na ampliação das linhas de pesquisa. Lá, ele se reencontrou com seu mestre Michel Rabinovitch.
Enquanto isso, Ruth desenvolveu estudo que mostrou o efeito imunizante contra a malária adquirido por células de fêmeas dos mosquitos do gênero Anopheles, transmissores dos Plasmodium. A descoberta abriu várias linhas de pesquisas de vacinas contra a doença.
Sempre que falava de seu próprio trabalho, Victor nunca deixa de falar da importância dessa descoberta de sua mulher, que rendeu ao casal diversos convites para trabalhar em outras instituições. Mas eles nunca deixaram a NYU devido ao grande envolvimento com suas equipes de colaboradores e com a própria universidade, que sempre investiu em seus projetos de pesquisa.
Cada um em seu campo de atuação, Victor e sua mulher passaram a se dedicar ao estudo dos Plasmodium, com o crescente reconhecimento internacional por suas contribuições para o combate à malária. Ruth se tornou a primeira brasileira membro da Fundação Nacional das Ciências do EUA, enquanto ele recebeu prêmios de importantes instituições científicas de diversos países.
O casal permaneceu nos EUA, onde criou seus filhos Michel, André e Sonia, todos eles médicos. Depois de várias tentativas infrutíferas de criar no Brasil um centro de pesquisas de padrão internacional para a malária, o casal entendeu que a burocracia brasileira acabaria transformando esse objetivo em uma novela sem fim. O jeito foi manter a colaboração com grupos de pesquisas daqui.
Ainda não se chegou a uma vacina que garanta total imunização contra a malária, mas há imunizantes em teste avanço em que houve importantes contribuições de Victor e Ruth.
Apesar de toda a sua contribuição, sempre que alguém perguntava a eles o que é necessário para eliminar a malária, eles nunca se esqueceram de lembrar a importância de erradicar a miséria e promover o saneamento básico.
Ruth morreu em abril de 2018, aos 89 anos.