SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Se depender dos versos de suas canções, “Ousar Abrir”, o terceiro álbum da cantora paulistana Marina Melo, 34, pode ser a evolução natural de seus discos anteriores, “Soft Apocalipse” (2016) e “Estamos Aqui” (2019).

Afinal, ela prossegue numa maneira de compor que espelha canções pessoais, intimistas até, e outras comentando e criticando experiências coletivas, como o turbilhão de informações no mundo conectado ou a crise ambiental.

“Já apresentava no primeiro disco isso de ter um lado soft e um lado apocalíptico, mas dessa vez fiz com muito mais consciência. Como desde então isso continua aparecendo, resolvi organizar. O lado A é o soft, e o lado B, o apocalíptico, mas nos dois aparecem respingos do outro”, diz a cantora. Essa mistura está clara na faixa “Vênus”, história de amor ambientada no cenário de caos global.

Marina Melo compôs as nove faixas do álbum ao violão. Se tivesse gravado dessa forma, apenas voz e cordas, já teria a oferecer um disco de letras bonitas e fortes. Em “Feed”, faixa sobre as redes, ela dispara: “Rolamos para baixo o feed sem perceber que estamos caindo”.

Mas a enorme ousadia do novo disco está na roupagem sonora. A voz de Marina e os violões dela e da artista mineira Luiza Brina, também produtora do álbum, são os únicos sons orgânicos audíveis nas músicas. Eles estão envolvidos por sons digitais criados por Lucas Ferrari.

“Foi um caminho até chegar à ideia de fazer dessa forma. Pela primeira vez eu compus as músicas na ordem que elas estão no disco. Queria uma narrativa em um lado A e um lado B.” Para compor, ela fez uma residência artística de três meses na Casa Líquida, em São Paulo.

Quando já estava inserida no projeto, que caminhava para uma sonoridade que incluiria muita percussão e até saxofone, Luiza Brina recebeu a visita de Ferrari, e o amigo mostrou alguns resultados de seu trabalho como sound designer. “A Luiza chegou empolgada e me perguntou o que eu achava de seguir esse caminho”, conta Marina.

A primeira ideia foi misturar os sons digitais com os instrumentos. A opção radical que vingou no projeto foi uma aventura de gravação inédita, desafiadora para Marina, Luiza e Ferrari. Muitas vezes um deles gostava de um som criado, mas os outros discordavam. A cantora relata que eles sentiram a necessidade de uma metodologia.

“Para cada música a gente escolheu três palavras que faziam parte do universo da canção, e então buscava sons associados a elas. Algumas palavras têm sons evidentes, como ‘mar’, que é associada ao barulho das ondas. Mas ‘tempo’, por exemplo, não tem. A partir desses sons escolhidos em cada faixa, a gente criou outros.”

O processo todo levou um ano e meio, mas essa parte da produção e criar os sons durou um ano. E foi longe do estúdio. Cada um ficava no seu canto, numa troca constante de arquivos de áudio. “Nós entramos no estúdio de uma maneira convencional, embora seja difícil falar em convencional nisso que a gente fez, apenas quando fomos gravar as vozes e os violões.”

Foi então que o disco ganhou convidados especiais. Chega a ser curioso que Marina Melo tenha reunido amigos da música de várias gerações diferentes. Muitos podem pensar que um trabalho tão inovador teria uma conexão mais tranquila com gente jovem, mas os convites passaram longe disso.

Na lista estão Ná Ozzetti, que apareceu no final dos anos 1970 no Grupo Rumo; Maurício Pereira, que na década seguinte despontou ao lado de André Abujamra no duo Os Mulheres Negras; e Otto, que surgiu na forte cena pernambucana dos anos 1990.

Esses veteranos colaboraram num álbum que teve também ajuda de nomes na cena musical recente: Barbarelli, Lio (da banda Tuyo) e o grupo Filarmônica de Pasárgada. A cantora diz que todos ficaram entusiasmados ao gravar de um modo totalmente inusitado.

Por cima de uma tessitura sonora intrigante, que torna atraente a audição, é possível com algum esforço imaginar essas canções em seu formato original de voz e violão. Fica possível entender que “Menina” e “Vênus” têm um tanto escondidas ali suas estruturas de música pop. E ver como os duetos com Maurício Pereira e Ná Ozzetti, respectivamente “Prometeu” e “Cidades”, apresentam aberturas mais suaves e vão ganhando peso, crescendo até o final.

Agora é esperar pela turnê do álbum, para ver como Marina Melo irá levar ao palco essa costura sonora. Com instrumentos? Ou não? Com a ousadia habitual da cantora, é difícil prever.

OUSAR ABRIR

– Onde Nas plataformas digitais

– Autoria Marina Melo

– Gravadora dobra discos