SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O ditador Nicolás Maduro explora a religiosidade e até o misticismo para se manter no poder. Ele já disse que um passarinho lhe transmitiu mensagem do falecido líder Hugo Chavéz. E nunca retira do dedo mindinho seu anel de esmeralda verde, que teria sido um presente de um guru indiano. Já nos últimos anos, vem se aproximando cada vez mais dos evangélicos que crescem de forma exponencial no país, angariando o apoio inclusive da Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo brasileiro Edir Macedo.

Críticos veem na movimentação oportunismo: seria uma forma de conter a perda da popularidade após anos de abuso dos direitos humanos, crises políticas e econômicas, além de eleições apontadas como fraudulentas. E o setor visado é estratégico -a cada ano, os evangélicos se multiplicam na Venezuela como em poucos países.

Pesquisa do instituto Latinobarómetro mostra que 2,1% dos venezuelanos se diziam evangélicos em 2010. Em 2023, o número já representava quase um terço da população: 30,9%. Abocanharam, sobretudo, fatia da Igreja Católica, que vem perdendo fiéis.

Em níveis percentuais, os evangélicos na Venezuela superam a média dos 17 países analisados da América Latina, de 23%, de acordo com o mesmo instituto. “Em um país com tanta incerteza, com uma crise humanitária como a que se vê, as pessoas recorrem à fé. Quando não resta mais nada, agarram-se à fé”, afirma a venezuelana Dhayana Fernández, professora da Universidad Central da Venezuela e da Universidad Simón Bolívar, na Colômbia.

A aproximação de políticos com grupos evangélicos não é um movimento inédito na Venezuela. Nunca, porém, a religião havia sido tão instrumentalizada como no regime de Maduro, diz Fernández, que pesquisa sobre direitos humanos.

Inclusive igrejas brasileiras ganham espaço no país. No ano passado, o bispo Ronaldo Santos, representante da Universal na Venezuela, foi orador de um culto que teve a presença de Maduro e da primeira-dama, Cilia Flores. Em um espanhol macarrônico, fez acenos ao regime.

“Podemos, meu Deus, ter sanções e bloqueios de todas as partes do mundo, mas não do céu. O céu está aberto sobre esta nação, sobre este país”, afirmou Santos. “Então, meu Pai, eu te peço: faça cair os bloqueios, as sanções e tudo o que tem impedido este país de avançar, de ir adiante.”

Chama a atenção o posicionamento diferente do manifestado pela Universal no Brasil. Em 2022, o bispo Renato Cardoso, genro de Edir Macedo, publicou texto em que listava cinco argumentos para sustentar que não é possível uma pessoa ser, ao mesmo tempo, cristã e de esquerda, a vertente política da qual Maduro diz pertencer.

Luciano Gomes dos Santos, doutor em teologia e que faz pesquisas na área, acredita que o objetivo da Universal seja obter uma concessão de TV na Venezuela. A organização, diz, adere a um conceito conhecido como igrejas eletrônicas, nas quais instituições utilizam a mídia para expandir o alcance e a influência.

Esse movimento ganhou força a partir da década de 1970 com a teologia da prosperidade, uma corrente teológica segundo a qual a fé em Deus leva à riqueza material e à saúde física. Trata-se de uma contraposição à teologia da libertação, popular entre católicos latino-americanos e que foca as desigualdades sociais, afirma Santos, também professor de ciências sociais no Centro Universitário Arnaldo Janssen, em Belo Horizonte.

Questionada pela reporagem sobre o evento de Ronaldo Santos com Maduro, a Universal disse que a igreja de cada país dispõe de total autonomia administrativa. Em nota divulgada após o ato do pastor, com o título “Pregação do Evangelho não é ato político e partidário”, também falou em distorção de fatos. “A solenidade religiosa pelo Dia Nacional do Pastor foi completamente deformada por alguns jornalistas, como se fosse um ato político e partidário.”

Próximo dos evangélicos, Maduro tem implementado programas que beneficiam as igrejas. Em 2023, o regime lançou o “Minha Igreja Bem Equipada”, que faz reformas e oferece mobiliários aos templos. No ano seguinte, foi criado o “Bônus do Bom Pastor”, que oferece ajuda financeira mensal a cerca de 20 mil líderes. Também em 2024, o ditador anunciou plano para diminuir impostos de organizações religiosas.

E as diretrizes da legenda de Maduro, o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), para o setor são acompanhadas de perto por familiares do líder. Em 2022, Nicolás Ernesto Guerra, filho do ditador, foi nomeado para a vice-presidência de assuntos religiosos da sigla.

Pastores também estão diretamente envolvidos com a política. É o caso do deputado suplente Moisés García, do PSUV e que também é presidente do Movimento Cristão Evangélico pela Venezuela (Mocev), organização que diz ter 5.000 integrantes e é considerada um braço do chavismo na comunidade evangélica. Em suas redes sociais, aparecem com destaque fotos suas ao lado do ditador.

Ainda que o regime transmita uma ideia de união, não são todos os pastores evangélicos que apoiam a aliança com Maduro. Mas, de acordo com a ONG Portas Abertas, que monitora cristãos perseguidos pelo mundo, as autoridades venezuelanas não toleram qualquer oposição ou crítica ao regime, e existem riscos de represálias.

“Os cristãos não devem denunciar corrupção, falta de práticas democráticas e violações dos direitos humanos, demonstrar apoio aos líderes da oposição ou se envolver em trabalho humanitário. Caso ‘desobedeçam’, enfrentam ameaças, ataques a igrejas, difamação, prisões arbitrárias, vigilância, censura, acesso restrito a serviços públicos e negação de itens básicos, como alimentos e remédios”, diz a ONG.

Em ranking elaborado pela Portas Abertas de países que mais perseguem cristãos, a Venezuela aparece atualmente na 71ª posição. No ano passado, quando Maduro foi declarado vencedor em pleito apontado como fraudulento, o país estava no 53º lugar.

No Brasil, o número de evangélicos também cresce, e eles representavam 26,9% da população, o segundo maior bloco religioso, atrás dos 56,7% que disseram professar a fé católica, de acordo com dados do IBGE divulgados em junho.

A Assembleia de Deus, outra igreja evangélica com atuação no Brasil, também tem presença na Venezuela, estando principalmente na região amazônica do país, segundo o pesquisador Luciano Gomes dos Santos.

Raimundo Barreto, professor do departamento de história no seminário teológico de Princeton, nos Estados Unidos, aponta como um dos motivos para a expansão dos evangélicos no continente a maior flexibilidade em relação à ordenação ao pastorado. Na Venezuela, esse contexto é amplificado pelas sucessivas crises. “Em um momento em que você não tem para onde correr, a grande esperança se torna uma intervenção divina”, afirma.