SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Gloria Perez se expressa com a objetividade de quem não tem tempo a perder. Ao longo de uma hora e meia de entrevista, não titubeou. Nada do que dizia soava acidental. Verbos e adjetivos eram escolhidos a dedo, como se soubesse o efeito que causaria no interlocutor -característica própria de alguém que encontrou na palavra o seu ofício.
Em mais de quatro décadas de carreira, Perez criou novelas de forte apelo emocional, adicionou aos folhetins causas sociais, culturas estrangeiras e inovações tecnológicas que viraram sua marca na teledramaturgia nacional.
A assinatura pode ser vista em enredos como “O Clone”, “América” e “Caminho das Índias”, que venceu o Emmy Internacional, em 2009. “No contexto atual, essas novelas nem chegariam ao público”, diz. “Foram tramas inovadoras, e inovar pressupõe correr riscos.”
Ela fala do medo de ofender o público e das preocupações com o politicamente correto. As tramas, inclusive, já foram alvo de críticas. Para alguns, o retrato que fez de países como Índia ou Turquia, em “Salve Jorge”, é estereotipado.
Perez discorda. “Quem foi ao Marrocos, à Índia, à Capadócia viu de perto o quanto a população dos locais gostou desses retratos”, afirma. “Hoje em dia, com essa coisa de não poder ofender um grupo, não poder ofender outro, você acaba fazendo uma novela sem conflito”, elemento que considera a espinha dorsal do gênero.
Perez entrou na Globo em 1979, como pesquisadora do departamento de teledramaturgia. Em 1983, colaborou com Janete Clair na novela “Eu Prometo”, antes de começar a tecer sua obra. Em abril, veio a público que os laços com a emissora haviam sido rompidos, três anos após “Travessia”, que sofreu diversas críticas e amargou uma audiência ruim para a faixa das nove. “Essa novela foi implodida por dentro”, diz a autora. “Detestei não ver no ar aquilo que eu escrevi.”
Mas a saída da emissora se deu após seu projeto seguinte, “Rosa dos Ventos”, ter recebido vetos da direção por sua trama com teor político e por abordar o aborto.
Para ela, essa preocupação em não desagradar o público teria feito com que a censura moral sobre a teledramaturgia, hoje, se tornasse pior que a da ditadura militar.
Perez ainda se lembra dos vetos da censora Solange Hernandes, a chamada “dama da tesoura”. “Agora nós temos uma multiplicidade de Solanges. Nas redes, com raras exceções, cada pessoa é uma Solange diferente”, afirma a novelista. “Antes, você tinha uma censura. Agora, a censura está espalhada na sociedade. É muito pior.”
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PERGUNTA – Em uma entrevista de 2011, a senhora disse que o politicamente correto na teledramaturgia é um saco e que a vida não é politicamente correta. Catorze anos depois, mantém essa opinião?
GLORIA PEREZ – Sempre achei que o politicamente correto engessa, reduz e elimina a possibilidade do conflito. Ao fazer isso, ele amordaça e empobrece o autor. Só que novela é conflito. O que você procura como criador de histórias é compreender e mostrar os sentimentos humanos em relação a um determinado assunto. Mas, hoje em dia, com essa coisa de não poder ofender um grupo, não poder ofender outro, você acaba fazendo uma novela sem conflito.
Quando eu fiz “Hilda Furacão”, a gente deixava a conclusão para o público. As pessoas entenderão e concluirão o horror do que o personagem está fazendo. Não cabe a mim cassar a fala dele ou fazer um discurso em cima disso.
É como um quadro. Não é necessário ter uma explicação ao lado da tela dizendo de que forma o público a deve enxergar. Como os avisos que aparecem em novelas antigas, dizendo que a obra reproduz comportamentos da época em que foi realizada. Para quê?
É óbvio que os valores e os costumes mudam em cada período histórico. Quando vejo uma novela de época em que é maravilhoso cortar a cabeça de alguém com uma espada, eu sei que aquilo é algo específico do passado e que é uma ação horrível. Eu não preciso ser informada sobre isso.
Quando dizem “as novelas estão assim porque os talentos morreram e não aparecem outros”, eu discordo. Existem talentos, mas eles foram engessados.
P – Críticos de TV afirmam que as novelas passam por dificuldades não só de audiência, mas também de criatividade. A teledramaturgia nacional está em crise?
GP – Sem dúvidas. As novelas não estão tendo a relevância de antes nem como entretenimento nem como porta-voz de temas importantes. A explicação disso não se resume à multiplicação das telas e das opções do público. A cultura “woke” introduziu um cerceamento à imaginação. A opção de não desagradar, de não tocar em temas sensíveis, de transformar conflitos humanos em pautas, acabou por encerrar a dramaturgia numa espécie de fórmula, retirando dela a capacidade de provocar. A cultura “woke” foi arrasadora para a dramaturgia.
P – Diante dessas preocupações, tramas como O Clone e Caminho das Índias seriam possíveis hoje?
GP – No contexto atual, elas nem chegariam ao público. Foram novelas inovadoras, e inovar pressupõe correr riscos. “Salve Jorge”, além de tratar de um tema muito sensível, o tráfico de pessoas, trazia a personagem da Nanda Costa como a primeira protagonista favelada e prostituída. Não imagino que essa ousadia fosse aprovada hoje em dia.
P – Em abril, a senhora decidiu encerrar o contrato com a Globo após uma trama envolvendo aborto na sua próxima novela ter sido vetada. Quais foram os bastidores da sua saída?
GP – Eu decidi pôr um ponto final porque meu contrato acabaria quando terminasse esta novela que foi barrada. Decidiram adiar a novela por causa do aborto. Aí eu falei “gente, se tem uma pessoa que sabe tocar com delicadeza nesse tipo de tema, sou eu, a minha história toda mostra isso”. Mas aí veio o medo de desagradar algumas áreas. A minha assinatura é lidar com temas delicados e trazer o público para a discussão. Se eu não puder fazer isso, eu acabo.
A emissora queria que eu assinasse um contrato de extensão para fazer a próxima novela, que viria depois de “Três Graças”, do Aguinaldo Silva. Eu falei que não me interessava e que queria rescindir o contrato. Eu senti que eu não conseguiria mais fazer as novelas que sei e quero fazer. Eu sou incapaz de pensar engessada. Ou eu tenho liberdade para voar, ou não tenho liberdade nenhuma.
P – A senhora entrou na Globo em 1979, num momento em que a censura da ditadura ainda era uma realidade. Como compara a vigilância moral naquele período com a atual?
GP – Na época, você tinha uma censura comandada pela dona Solange [Hernandes, chefe da Divisão de Censura de Diversões Públicas do regime militar]. Era ela quem mandava cortar as coisas. Só que agora nós temos uma multiplicidade enorme de “Solanges”. Nas redes sociais, com raras exceções, cada pessoa é uma Solange diferente, julgando o outro e tentando cassar a palavra alheia. Não era assim. Antes, você tinha uma censura. Agora, a censura está espalhada na sociedade. É muito pior.
P – Novelas suas foram criticadas por trazer um suposto retrato estereotipado de culturas estrangeiras. De que modo avalia essa crítica?
GP – Fico com a aprovação das culturas retratadas. Quem foi ao Marrocos, à Índia, à Capadócia sabe disso e viu de perto o quanto a população dos locais gostou desses retratos. Sempre busquei incluir a face mais progressista e a mais tradicional de cada cultura. Mês passado, uma amiga jornalista viajou pelo Arzebaijão. Num restaurante, ao saber que era brasileira, os garçons falaram com entusiasmo de “O Clone”.
P – A sua última novela na Globo foi Travessia, de 2022. Ao longo da exibição, a obra foi alvo de críticas, muitas delas direcionadas à atuação de Jade Picon. A senhora se arrepende da escalação dela para a trama?
GP – Eu não escalei a Jade. Quem escalou foi o Ricardo Waddington. Olha, eu vou falar pouco sobre isso, porque vou comentar mais no meu livro de memórias. Mas “Travessia” foi um ponto fora da curva. Essa novela foi implodida por dentro. Não deu certo intencionalmente.
P – Quem atuou para que a novela não desse certo?
GP – Posso dizer que a Jade Picon, apesar da inexperiência dela, foi muito importante para mim nessa novela. Ela deu vida a momentos emocionantes e não atrapalhou o enredo. Mas eu não quero falar sobre isso. Detestei não ver no ar aquilo que eu escrevi.
P – A senhora aceitaria escrever novelas para o streaming ou para outras emissoras?
GP – Eu não me aposentei. Apenas tirei uns meses sabáticos para descansar, botar em dia tudo o que ficou atrasado no que diz respeito à saúde e às pendencias da casa. Tenho muitas propostas a avaliar. Quando encerrar o tempo para me dedicar a mim, vocês terão notícias.
P – Em América, de 2005, uma cena de beijo gay que seria exibida no último capítulo foi vetada pela Globo. Como recebeu essa notícia na época?
GP – Fiquei chocada e chateada. Não era um beijo de sacanagem. Estava tudo muito bem construído. Nós fizemos sete versões da cena. Tinha versão mais punk, mais suave. Tivemos muito cuidado para ver se uma delas passava. Aí aconteceu uma reunião de cúpula no dia da exibição em que levamos as sete versões. Um monte de diretores se reuniu para assistir às cenas e votar. Os votos contrários predominaram e a cena foi suspensa.
Eu tinha que entender que a dona do produto era a emissora e que ela tem o direito de decidir o que é melhor para o público. Eu e o Marcos Schechtman, diretor da novela, achávamos que era um tiro no pé e um grande erro.
P – Em 1998, a senhora fez o remake da novela Pecado Capital, da sua mentora, Janete Clair. Agora está no ar o remake de Vale Tudo. O que a senhora tem achado da novela?
GP – Eu vi só o primeiro e o segundo capítulo. Tive uma péssima experiência com remake. Não gosto e não acredito neles. O remake de “Pantanal” deu certo porque essa novela passou na TV Manchete, emissora que tinha uma audiência menor do que a da Globo. Mas eu não lembro de nenhum remake recente que tenha dado certo e despertado o mesmo entusiasmo que a versão original despertou. O que fica na boca do povo é sempre o que foi feito lá atrás.
P – Em uma entrevista recente, o ator Raul Gazolla disse que a senhora voltou a sorrir quando soube da morte de Guilherme de Pádua, que assassinou a sua filha, Daniella Perez, em 1992. Como reagiu à morte dele?
GP – Tive uma reação estranha. Não senti nada. Recebi esse fato com a alma e o coração em branco. Era uma pessoa que já tinha morrido havia muito tempo para mim.
P – Nas entrevistas à época do assassinato de Daniella, chama a atenção o modo objetivo com o qual a senhora falava sobre o caso. Como conseguiu manter a lucidez?
GP – Eu sabia que a minha filha seria assassinada de novo todos os dias se não tivesse ninguém para a defender. Quem pode defender o filho, antes de mais nada, é a mãe. Por isso, era preciso preservar a lucidez. Por esse motivo, continuei a escrever “De Corpo e Alma” [na qual Daniella atuava quando foi morta]. A novela me obrigava a ter um foco.
Nessa época, me lembrei de uma história do professor Manoel Maurício de Albuquerque, com quem tive aula na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele sempre contava para a gente como sobreviveu quando foi preso na ditadura. Sozinho na cela, só tinha uma caixa de fósforo. Todos os dias, tirava os palitos para contar. Depois, guardava e recomeçava a contagem de novo. Fazer isso o mantinha lúcido.
Foi isso o que eu fiz. Cada palito era um capítulo que eu continuei escrevendo. Tem momentos em que você não pode se deixar no vazio, se não você cai. Se eu caísse, minha filha cairia junto.
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RAIO-X | GLORIA PEREZ, 77
Nascida no Rio de Janeiro, passou a infância em Rio Branco, no Acre. Cursou história na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1979, entrou na TV Globo como pesquisadora do departamento de teledramaturgia. O primeiro passo como autora se deu em 1983, quando colaborou com Janete Clair na novela “Eu Prometo”. Depois disso, emendou um trabalho atrás do outro, tornando-se uma das autoras mais importantes do país, com folhetins como “Barriga de Aluguel”, “O Clone”, “América” e “Caminho das Índias”.