SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Artefatos de pedra encontrados na ilha de Sulawesi, região central do arquipélago da Indonésia, podem ser a chave para demonstrar que ancestrais remotos da humanidade já tinham realizado viagens oceânicas entre 1,5 milhão de anos e 1 milhão de anos atrás. Para chegar à ilha, eles precisariam cruzar um trecho de pelo menos 50 km de mar profundo mesmo no momento de níveis mais baixos dos oceanos.
Detalhes sobre a descoberta saíram na última quarta-feira (6) na revista científica Nature. O novo estudo é assinado por uma equipe de indonésios e australianos, liderados por Budianto Hakim, da Agência Nacional de Pesquisa e Inovação da Indonésia, e Adam Brumm, da Universidade Griffith (Brisbane, Austrália).
Ainda não é possível saber quem eram os criadores dos instrumentos líticos achados em Sulawesi. Isso porque ainda não foram identificados fósseis de hominínios (membros do grupo dos seres humanos atuais e seus ancestrais mais próximos) no sítio arqueológico de Calio. É indiscutível, no entanto, o fato de que os objetos foram modificados intencionalmente por hominínios, de acordo com os cientistas.
De qualquer modo, se as datações obtidas pelos pesquisadores estiverem corretas, a correlação com outros locais estudados na Ásia indica que os fabricantes das ferramentas provavelmente eram indivíduos da espécie Homo erectus. Ou seja, tinham tamanho e proporções corporais similares ao das pessoas atuais, mas cérebro cerca de um terço menor e cultura material pouco sofisticada. De origem africana, eles estavam em pleno processo de expansão por outras regiões do Velho Mundo.
A equipe de Hakim e Brumm identificou um total de sete artefatos, todos feitos a partir de “chert” (tipo de rocha também conhecido como pederneira em português, por causa das faíscas que provoca quando dois pedaços são batidos um contra o outro).
Por causa das bordas afiadas e da dureza dessa matéria-prima, ela é tradicionalmente apreciada por quem produz instrumentos de pedra. E, de fato, as lascas são pequenas e afiadas -ao que tudo indica, foram fabricadas a partir de pedras maiores, os chamados núcleos, que os hominínios parecem ter obtido no fundo de riachos. Segundo os pesquisadores, é provável que fossem usadas para tarefas como corte e raspagem.
A parte principal do trabalho, porém, não foi propriamente a análise dos artefatos, mas sim a estimativa da idade deles, o que exigiu o uso de diferentes técnicas para entender a estratigrafia do sítio, ou seja, as estruturas das camadas de sedimentos nas quais as ferramentas foram achadas.
Para chegar à datação, dois métodos principais foram usados. O primeiro é o do paleomagnetismo, que consiste numa espécie de calendário do campo magnético da Terra -aquele que explica, por exemplo, o fato de as agulhas imantadas das bússolas apontarem para o norte.
Acontece que a orientação do campo magnético terrestre costuma sofrer reversões ao longo de centenas de milhares de anos, e isso pode ficar preservado em certos tipos de camadas geológicas, o que permite a datação delas.
Além disso, embora não houvesse ossos de hominínios no sítio arqueológico de Sulawesi, os pesquisadores encontraram lá o maxilar e os dentes de um Celebochoerus heekereni, um porco selvagem de mais de 200 kg. Dois métodos diferentes, um deles baseado na presença de derivados do elemento químico urânio preservados na dentição do bicho, também ajudaram na estimativa da idade dos instrumentos.
Resultado: eles teriam uma idade mínima de 1,04 milhão de anos, podendo chegar até 1,48 milhão de anos -por causa das próprias metodologias usadas e da estratigrafia do sítio, o grau de incerteza é considerável. Apesar de tudo isso, a data é importante porque, se confirmada, corresponderia a uma das mais antigas jornadas oceânicas da linhagem dos hominínios, podendo ser a mais antiga de todas.
A dúvida quanto a isso tem a ver com o fato de que indícios semelhantes da presença de hominínios foram achados na ilha de Flores -também na Indonésia, ao sul de Sulawesi- com datação de 1 milhão de anos, ou seja, um possível “empate técnico” com o sítio arqueológico do novo estudo. Foi em Flores que os paleoantropólogos encontraram esqueletos dos misteriosos e polêmicos “hobbits”, ou Homo floresiensis -hominínios com apenas cerca de 1 metro de altura e traços arcaicos, que poderiam descender do H. erectus. A aparição deles no registro fóssil da ilha, porém, é mais recente, ocorrendo cerca de 700 mil anos atrás.
Além do desafio de cruzar a barreira de oceano profundo, os hominínios em Sulawesi e Flores, caso tenham mesmo conseguido chegar lá em épocas tão remotas, também tiveram de enfrentar uma considerável barreira ecológica. Acontece que essas ilhas fazem parte da região conhecida como Wallaceia, uma zona de transição entre os ambientes da Ásia tropical, com seus elefantes, tigres etc., e os da Oceania, repletos de marsupiais (parentes dos cangurus e gambás) e com poucas espécies de mamíferos de grande porte.
A adaptação a esse novo mundo seria, por si só, um grande desafio. A grande dúvida, porém, é se a viagem oceânica teria acontecida de modo deliberado. Para os autores do estudo, a resposta mais provável é “não”: os hominínios poderiam ter chegado lá por acidente, arrastados por tempestades e agarrados a troncos de árvores, a exemplo do que às vezes acontece com animais menores. Só novos estudos poderão trazer mais pistas sobre o que realmente aconteceu.