BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – Com dois meses no cargo, Friedrich Merz tomou uma decisão que entrará em sua biografia. Interromper a venda de armas para Israel, como anunciou nesta sexta-feira (8), é bem mais do que se posicionar diante de um conflito complexo e polarizado. A existência de Israel é razão de Estado na Alemanha, algo que adiciona camadas de complicação à decisão.
“O governo alemão acredita que a ação militar ainda mais dura na Faixa de Gaza, decidida pelo gabinete israelense na noite passada, torna cada vez mais difícil ver como esses objetivos podem ser alcançados”, declarou o primeiro-ministro em comunicado. “Nessas circunstâncias, o governo alemão não aprovará nenhuma exportação de equipamentos militares que possam ser usados na Faixa de Gaza até novo aviso.”
Em termos militares, não é pouca coisa. Se dois terços das importações israelenses de armas vêm dos EUA, outros 30% são alemães, de acordo com levantamento do Sipri (Instituto Internacional de Estudo da Paz de Estocolmo). Os dados se referem ao período entre 2019 e 2023, e o volume não teria se alterado muito no último ano. Israel produz grande parte do armamento que utiliza, mas em determinados tipos de equipamentos, como fragatas, são dependentes dos fabricantes alemães.
Em ligação para Merz, horas depois do anúncio, Binyamin Netanyahu expressou decepção, segundo seu gabinete. Em postagem no X, falou que a “Alemanha está recompensando o terror do Hamas” com o embargo. Para o premiê israelense, o país tinha que continuar apoiando “a guerra justa de Israel contra o Hamas, que perpetrou o ataque mais horrível contra o povo judeu desde o Holocausto”.
A citação ao genocídio perpetrado pelo regime nazista contra os judeus na Segunda Guerra Mundial foi a forma pouco sutil que Netanyahu encontrou para lembrar Merz do peso de sua decisão. Se a Alemanha trabalha a existência de Israel como razão de Estado, termo emblemático cunhado pela ex-premiê Angela Merkel, parece claro que interromper o fornecimento de armas, mesmo que parcialmente, vai contra esse pressuposto histórico.
Líder de uma coalizão até aqui impopular, com fissuras evidentes em temas divisivos, o primeiro-ministro conservador desagradou integrantes de seu partido e de sua aliança parlamentar. O líder da ala jovem da CDU, legenda que preside, escreveu nas redes sociais que Merz tinha abdicado “dos princípios de seu país”. “A partir de hoje, Israel fará o nosso trabalho sujo, só que sem armas alemãs”, escreveu Johannes Winkel, em referência a frase recente do premiê sobre o ataque de Israel ao Irã.
Merz foi duramente criticado também pelas instituições judaicas do país. “Privar Israel da oportunidade de se defender de tais ameaças coloca sua existência em risco”, declarou Josef Schuster, presidente do Conselho Central de Judeus da Alemanha, lembrando do ataque terrorista do Hamas, em outubro de 2023
Por outro lado, já é cobrado a fazer mais pela oposição e até pelos parceiros da coalizão de governo, os sociais-democratas do SPD. Há pedidos de boicote comercial e até de sanções a Netanyahu, algo que o governo Merz se recusa a fazer. Um comentarista do jornal Die Zeit chegou a escrever que o premiê quer evitar a todo custo associações com o passado, como os cartazes “não compre de judeus” de manifestações nazistas dos anos 1930.
A crítica à crise humanitária na Faixa de Gaza, contundente mesmo antes de assumir o cargo, sempre esteve no discurso do premiê, modulado, porém, por decisões como a de não reconhecer o Estado palestino, na contramão de vizinhos europeus, como a França, e o Canadá. “Estamos em uma fase decisiva, na qual a Alemanha precisa se posicionar”, declarou o ministro das Relações Exteriores, Johann Wadephul, no último fim de semana, quando se encontrou com Netanyahu em Tel Aviv.
Um dos ministros mais ativos de Merz neste início de mandato, Wadephul parecia antecipar a decisão do chefe, exigida também por parte da sociedade alemã. Além de uma carta pública que ganhou a adesão de mais de 200 nomes da cultura do país, uma pesquisa do Instituto Forsa mostrou que 74% da população apoia medidas mais duras contra Israel.
É um sentimento crescente na Europa, sensibilizada pelas imagens da tragédia em Gaza. Na quinta-feira (7), em entrevista ao site Politico, Teresa Ribera, vice-presidente da Comissão Europeia, declarou pela manhã: “Se não é genocídio, parece-se muito com a definição usada para expressar seu significado”. À noite, Netanyahu anunciava o plano de tomar o controle militar total do território palestino, o que provocou a reação de Merz.
Uma decisão difícil, de impacto para a geopolítica europeia e, por certo, para a cada vez mais polarizada política interna alemã.