SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Foram tantos anos ouvindo histórias do rio São Francisco, do centro de São Paulo, da Vila Gustavo, contadas a mim, a estranhos no metrô, a vizinhos de quem falava bem pela frente e mal pelas costas, que posso ouvir a voz firme da vó Polu quando sento para escrever sobre ela.”
É assim que é introduzida a personagem central de “Apolinária”, primeiro romance da jornalista Bianca Santana.
A história de uma avó, uma neta e de todo o círculo social das duas é contada de maneira intercalada, por meio de duas narradoras, em primeira pessoa, indo do passado ao presente. Primeiro o leitor é apresentado a Apolinária -mais conhecida por seu apelido, Polu-, uma mulher que nasceu e cresceu na Bahia e que migra para São Paulo em meados dos anos 1940.
Ao longo da narrativa, que apresenta momentos da juventude à velhice de Polu, o leitor passa a percebê-la pelo olhar da neta, Bianca. Criada na periferia de São Paulo, a personagem inspirada na própria escritora passeia entre a ficção e a realidade para contar a história da matriarca de sua família, enquanto apresenta uma realidade social que é comum a muitas mulheres negras migrantes.
“Escrever, na voz de uma personagem inspirada na minha avó, algumas das histórias que eu ouvi dela é algo importante para mim, porque mulheres como a minha avó não escreveram livros. E muitas vezes a voz delas não aparece na literatura brasileira ou aparece como objeto, de forma muito estereotipada”, afirma a autora em entrevista.
Segundo ela, ainda que sua avó fosse uma mulher que não sabia ler ou escrever, uma preocupação na construção da narrativa foi respeitar a norma culta na voz de Polu, evitando preconceitos e estigmas que muitas vezes são relacionados às pessoas analfabetas ou com pouco estudo formal.
Para tanto, Santana conta que um de seus grandes desafios foi estabelecer uma voz literária para Apolinária, inspirada em uma pessoa tão próxima. A construção teve grande influência das viagens realizadas por Bianca para a terra natal da matriarca.
A partir do jeito das pessoas, dos costumes e vocabulários da região, a autora desenvolveu a história de Polu da juventude até os desafios que enfrentou com a mudança para a capital paulista.
O projeto da obra ficou germinando por mais de dez anos desde a ideia inicial, segundo Santana. Após idas e vindas em meio a reescritas, a decisão de apresentar os pontos de vista das duas narradoras em primeira pessoa surgiu após uma palestra da escritora somali-italiana Igiaba Scego, que a inspirou a dirigir a narrativa a sua filha Cecília.
Autora de obras de não ficção como “Quando me Descobri Negra” e “Continuo Preta: A Vida de Sueli Carneiro”, Santana diz ver no romance uma outra forma de contar histórias reais da sociedade brasileira.
“A Bianca autora aparece muito fortemente na voz da Bianca personagem, mas ela também constrói essa voz da Apolinária, que não é uma mulher que tem uma visão crítica em relação ao racismo ou às desigualdades. Mas enquanto conta a história dela, ela está falando de racismo e desigualdade.”
Uma das influências para o desenvolvimento do livro foi o conceito de “escrevivência”, elaborado pela escritora mineira Conceição Evaristo. “Ela fala desse corpo de mulher negra escrevendo a partir das próprias vivências, um ‘eu’ que também é ‘nós’. A partir disso, eu me senti convocada para escrever numa primeira pessoa, na voz dessa personagem. Porque Apolinária é a minha avó, mas também sou eu e muitas mulheres negras do Brasil, em uma voz que não aparece suficientemente na nossa literatura.”
Outras influências apontadas por Bianca Santana são a americana Toni Morrison e Ana Maria Gonçalves, primeira mulher negra a se tornar uma imortal da Academia Brasileira de Letras, algo que Santana diz esperar que “seja uma abertura de portas para a chegada de mais mulheres negras” à instituição.
As intelectuais Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento também foram inspiração, diz Santana, ao moldar seu olhar sobre o mundo -esmiuçado tanto em seus livros ensaísticos quanto em “Apolinária”, que ela promete ser apenas a sua primeira incursão na ficção entre muitas que ainda virão.
APOLINÁRIA
Preço R$ 69,90 (112 págs.); R$ 48,90 (ebook)
Autoria Bianca Santana
Editora Fósforo