BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O governo Lula (PT) acionou os Estados Unidos na OMC (Organização Mundial do Comércio), em reação às tarifas estabelecidas por Donald Trump.
O chamado pedido de consulta foi entregue nesta quarta-feira (6) na missão dos EUA junto à organização.
Apesar da alta probabilidade de não ter efeito prático, já que a consulta precisa ser aceita pelos americanos e a última instância da organização está paralisada, o movimento é visto no Palácio do Planalto como um gesto simbólico importante para marcar posição do Brasil em defesa do sistema multilateral de solução de disputas comerciais.
Na terça (5), o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, disse que o procedimento de consultas seria aberto na OMC.
O pedido via OMC, primeiro passo de um processo na entidade, ocorre dois dias depois de uma reunião do Conselho Estratégico da Câmara de Comércio Exterior, presidido pelo vice-presidente Geraldo Alckmin e composto também por membros como Rui Costa (Casa Civil), Fernando Haddad (Fazenda), Simone Tebet (Planejamento) e Alexandre Silveira (Minas e Energia).
Por meio das consultas, quem reclama solicita a outro informações sobre as práticas alegadamente comerciais e requer modificações das medidas.
Entre os argumentos reunidos pelo Brasil para uso na OMC, está a alegada infração dos EUA a regras que formam a espinha-dorsal da Organização. Uma delas é a da transparência, que exige dos membros a publicação de regulamentações claras e previsíveis sobre políticas comerciais. Segundo integrantes do governo brasileiro, as tarifas de Trump são unilaterais e não estão sendo notificadas à entidade.
Outro princípio violado pelos EUA, na visão brasileira, é o da “nação mais favorecida” que exige de um país o tratamento igual aos demais membros, sem discriminação. Isso garante que as vantagens comerciais a um parceiro sejam estendidas a todos os outros.
Além disso, as tarifas de Trump não estariam respeitando o chamado Schedule of Concessions as tarifas máximas a serem praticadas pelos membros da organização. Os percentuais americanos estão, em geral, muito além dos números com que eles haviam se comprometido. Também pode ser usada a regra na OMC que prevê uma compensação ao país que for prejudicado pela tarifa de outro.
“Ao se distanciar dos compromissos multissetoriais característicos da OMC, a medida desestabiliza o equilíbrio construído ao longo de décadas de negociações multilaterais e representa sério risco à arquitetura internacional de comércio”, afirmou o ministério das Relações Exteriores, em documento interno que embasou a decisão de acionar os americanos.
Os EUA, porém, precisam aceitar o pedido para o início das conversas. Se as consultas não resolverem a disputa em 60 dias após o recebimento do pedido, o demandante pode pedir a instauração de uma segunda etapa: um painel.
Os painéis são formados por três membros, escolhidos de comum acordo pelas partes. Os dois países apresentam petições escritas e participam de audiências. O painel emite um relatório sobre as medidas em contestação e sua compatibilidade com acordos da OMC.
O prazo teórico para a apresentação desse relatório é de até seis meses, prorrogáveis por mais três. Na prática, no entanto, a fase de painel tem durado cerca de 12 meses a não ser em casos de maior complexidade, que podem se arrastar por até cinco anos.
O país derrotado no relatório do painel pode entrar com recurso, dando início a uma terceira e última etapa: uma contestação no Órgão de Apelação. O colegiado pode manter, modificar ou reverter as conclusões de um painel e a decisão é de implementação obrigatória pelos países-membros, devido a compromissos assumidos com a OMC por meio de suas respectivas legislações.
O problema é que essa última instância está paralisada desde 2019 graças aos EUA. Trump anunciou em agosto de 2017 (durante seu primeiro mandato) que não fecharia acordo para preencher as vagas do colegiado.
Com isso, até hoje mais de 20 decisões de painéis na OMC foram apeladas “no vácuo”. Isso significa que a instituição não pode tomar decisões finais caso um país conteste resultados de instâncias anteriores.
Ngozi Okonjo-Iweala, diretora-geral da OMC, ressaltou no ano passado que, apesar de a última instância estar inoperante, o sistema de resolução de contestações continua ativo. “O Órgão de Apelação está paralisado. Mas o sistema em si [de resolução de conflitos], não”, disse.
A avaliação relatada por membros do governo à Folha nos últimos dias é de que, mesmo que a última instância da OMC esteja paralisada por causa dos americanos, os EUA continuam sendo membros da instituição e têm diferentes interesses em discussão no órgão.
Exemplos recentes também mostram que os EUA não deixaram totalmente a OMC. Em janeiro, por exemplo, os americanos chegaram a um acordo com o Vietnã após reclamações do país asiático sobre medidas adotadas pelos americanos no setor pesqueiro. Em maio, EUA e China tiveram negociações na organização após Pequim reagir a iniciativas comerciais da gestão Trump.
Uma solução final pode demandar anos, como no caso do algodão. O Brasil reclamou na OMC em 2002 contra práticas comerciais adotadas pelos EUA e o relatório do painel só foi divulgado em 2004. Os EUA recorreram e a decisão do órgão de apelação só foi publicada em 2008. Um acordo entre as duas partes deu fim ao caso somente em 2014.
ENTENDA AS FASES DE RESOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS NA OMC
Consultas: fase inicial, em que a parte demandante solicita a outra informações sobre práticas comerciais e requer modificações seguindo as regras da OMC. A parte demandada tem 10 dias para responder. Sem uma solução em 60 dias, quem reclama pode pedir o estabelecimento de um painel
Painel: são constituídos por três membros, escolhidos de comum acordo pelas partes. Os países apresentam petições escritas e participam de audiências. Ao final, o colegiado emite um relatório. Em teoria, o prazo é de 6 meses, prorrogáveis por mais 3. Na prática, tem durado cerca de 12 meses, mas pode durar até 5 anos em casos de maior complexidade
Órgão de Apelação: caso discorde do relatório, o país pode contestá-lo no colegiado final da OMC, que revisa o documento. De 7 membros, 3 participam de cada controvérsia. As decisões precisam ser seguidas pelos países. No entanto, o órgão está sem quórum devido aos EUA e qualquer apelação iria para o “vácuo”.